quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
No prelo: Em busca do povo brasileiro
 |
Ridenti: agitação refletiu liberalização dos costumes |
Neste livro, Marcelo Ridenti analisa o ambiente cultural de esquerda no Brasil durante o regime militar, período em que artistas e intelectuais procuraram aproximar-se do “povo”. Antes de tentar avaliar se a empreitada foi bem ou mal sucedida, o autor busca compreender o imaginário e a ação daqueles artistas, “que se queriam populares, e não propriamente o povo”, e foram responsáveis por práticas políticas e culturais socialmente embasadas nas classes médias urbanas. Confira trecho do livro, que a Editora Unesp lança até março:
“A utopia que ganhava corações e mentes na década de 1960 era a revolução (não a democracia ou a cidadania, como seria anos depois), tanto que o próprio movimento de 1964 designou-se como revolução. As propostas de revolução política, e também econômica, cultural, pessoal, enfim, em todos os sentidos e com os significados mais variados, marcaram o debate político e estético. Enquanto alguns se inspiravam na revolução cubana ou na chinesa, outros mantinham-se fiéis ao modelo soviético, terceiros faziam a antropofagia do maio francês, do movimento hippie, da contracultura, propondo uma transformação que passaria pela revolução nos costumes. Rebeldia contra a ordem e revolução social por uma nova ordem mantinham diálogo tenso e criativo, interpenetrando-se em diferentes medidas na prática dos movimentos sociais, expressa nas manifestações artísticas e nos debates estéticos, como registrou por exemplo Leandro Konder, num artigo da época (1967).
A forte presença cultural da esquerda não deve elidir as articulações da direita, a qual, apesar de tudo, nunca perdeu o controle do processo, num momento em que a indústria cultural começava a ganhar magnitude digna desse nome no Brasil, como demonstrou Renato Ortiz, inclusive com dados estatísticos, em A moderna tradição brasileira (1988).
A respeito do embate político e cultural entre esquerda e direita nos meios de comunicação de massa, pode-se dar um exemplo significativo, lembrado no depoimento que me concedeu Alípio Freire. Ele comentou uma visita de Caetano Veloso, em 1968, ao programa de entrevistas que a conservadora Hebe Camargo conduzia na TV Record de São Paulo, a emissora de maior audiência na época. Caetano estava na fase tropicalista e recém lançara a canção Soy loco por ti, América, de Gil e Capinan, em homenagem a Che Guevara, assassinado na Bolívia. Cantava-se o nome do homem morto, louco pela América, que a censura não permitiria dizer com todas as letras:
Soy loco por ti, América/ yo voy traer una mujer playera/ que su nombre sea Martí/ ... / como se chama a amante desse país sem nome/ esse tango, esse rancho/ dizei-me/ arde o fogo de conhecê-la/ ... / El nombre del hombre muerto/ ya no se puede decirlo/ quien sabe/ antes que o dia arrebente/ antes que o dia arrebente/ el nombre del hombre muerto/ antes que a definitiva noite/ se espalhe em latino América/ el nombre del hombre es pueblo/ espero amanhã que cante/ el nombre del hombre muerto/ não sejam palavras tristes/ soy loco por ti de amores/ ... / estou aqui de passagem/ sei que adiante/ um dia vou morrer/ de susto, de bala ou vício/ de susto de bala ou vício/ no precipício de luzes/ entre saudades, soluços/ eu vou morrer de bruços/ nos braços, nos olhos/ nos braços de uma mulher/ nos braços de uma mulher/ mais apaixonado ainda/ dentro dos braços da camponesa/ guerrilheira, manequim/ ai de mim/ nos braços de quem me queira/ [...]
Homem, povo, guerrilheiro, morte do herói, no ritmo anárquico de uma rumba, no estilo cubano: o tropicalismo reconstruía à sua maneira o romantismo revolucionário do período – tema a ser retomado no penúltimo capítulo. Quanto ao episódio do programa de Hebe Camargo, segundo Alípio Freire:
Hebe começa a apertar o Caetano, insiste: “por que essa rumba? Quem é esse homem morto?”. Vai deixando o Caetano um pouco acuado, e ele termina a entrevista dizendo: “Hebe, você não entendeu, canto essa rumba porque é um ritmo ótimo para dançar”. Foi muito constrangedor. Não se brinca com essas coisas no ar. Por brincadeiras semelhantes, o Randal Juliano mandou o Caetano para onde mandou.
Baseado no que lhe disse um major que o interrogou, Caetano Veloso responsabilizou por sua prisão um apresentador de festivais de música e outros programas da TV Record e da rádio Jovem Pan de São Paulo: Randal Juliano reclamara no ar por providências contra o suposto desrespeito à pátria por parte de Caetano e outros tropicalistas. Juliano teria criado “uma versão fantasiosa em que nós aparecíamos enrolados na bandeira nacional e cantávamos o hino nacional enxertado de palavrões”. Essa versão teria repercutido nos meios militares e levado à prisão de Caetano e Gil (Veloso, 1997, p.396-7).
Como bem observou Alípio Freire, “o programa da Hebe é uma coisa importante a estudar. A reação mais ou menos explícita passava toda por lá. Mesmo quando ela levava artistas de esquerda, o objetivo era a luta ideológica, política”, na qual Hebe e a reação colocavam-se “em posição de força”. Alípio rememorou outro episódio emblemático da reação pela TV à agitação de esquerda em 1968: no auge das manifestações de estudantes e trabalhadores franceses, compareceu ao programa de Hebe Camargo a legendária atriz francesa, radicada no Brasil, Henriette Morineau: “Depois de as duas juntas escracharem o que estava acontecendo em 68 na França, do ponto de vista mais reacionário possível, a atriz – com fitas azul, vermelha e branca no peito – recebe diploma e canta a Marselhesa”.
Alípio Freire contou outro caso, em que Nara Leão teria dado uma boa resposta a Hebe Camargo no ar – como em geral acontecia com seus convidados de esquerda do meio artístico:
 |
Crédito: Iconographia A utopia que ganhava corações e mentes era a revolução |
A Hebe tenta encostar a Nara na parede, perguntando: “Pois é, você foi a musa da Bossa Nova, depois da música de protesto, agora você está na Tropicália...”, alguma coisa assim, tentando desconcertar a Nara, que responde: “Olha, o que me surpreende é que as pessoas que hoje defendem a Bossa Nova e a música popular brasileira, em contraposição à Tropicália, são exatamente aquelas que no momento em que surgiu a Bossa Nova se insurgiram contra ela”. E Nara diz a frase: “São pessoas que estão sempre dispostas a matar o velhinho que morreu na véspera”. Estou citando de memória, pode haver alguma imprecisão na palavra, mas foi isso que aconteceu.
Estava em movimento, também no terreno artístico e cultural, a reação que se efetivaria após a edição do AI-5. Houve repressão crescente a qualquer oposição à ditadura. Com o refluxo dos movimentos de massas, as derrotas sofridas pelas forças transformadoras no mundo todo, a censura, a ausência de canais para o debate e a divulgação de qualquer proposta contestadora, houve a adesão de alguns a grupos de esquerda armada, que foram logo desbaratados pela ditadura. Os projetos românticos revolucionários, políticos e estéticos seriam derrotados rapidamente.
A agitação cultural e política das classes médias nos anos 1960 estava intimamente ligada à liberalização nos costumes. Sobre isso, afirmou o cineasta Cacá Diegues, numa frase debochada: “a mulher e a revolução, o Brasil e a dor de corno, tudo era uma coisa só”. Segundo ele, agora com vocabulário mais apropriado:
Era como se não nos permitíssemos separar as coisas. [...] Estávamos de tal modo convencidos de que iríamos construir um mundo melhor, que nem alimentávamos dúvidas: no dia seguinte o mundo seria feliz e risonho graças aos nossos filmes, peças etc. Então, isso implicava uma responsabilidade tão grande que a vida privada deixava de existir. A escrita privada e a vida pública tinham se tornado um só universo. [...] O trabalho cotidiano e até mesmo as ideias já não nos pertenciam, e sim à comunidade que participava daquilo. (apud Moraes, 1991, p.107)
Dependendo da ótica, essa liberalização comportamental podia ser vista como falta de seriedade política. Por exemplo, a esquerda foi retratada no romance de Antonio Callado, de 1970, Bar Don Juan, de maneira bem diferente da idealização do intelectual engajado, que aparecera anos antes em Quarup (Callado, 1967, 1982). Numa das últimas entrevistas que concedeu antes de falecer, Callado disse-me sobre seus amigos de esquerda, do círculo que frequentava: “Esse pessoal era metido a Don Juan, queria comer todo mundo, aquelas coisas”. Ele entendia que “o brasileiro não tem é paciência de organização. Não tinha nada organizado” nos grupos de combate à ditadura. Para ele,
o pessoal do Bar Don Juan era muito mais parecido comigo [do que o de Quarup]. Todo mundo pensava muito em mulher, em namoro, em quem é que vai comer, quem não vai comer. E, no meio dessa coisa toda, o desafio, não é? As eventuais prisões que a gente sofria. Tudo isso era parte de uma vida interessante, se o sujeito não chegasse à coisa de tortura. E, aí, deixava de ser brincadeira.
Permito-me observar: quem se dedicar a recolher o anedotário, a partir de fatos do cotidiano do período, terá em mãos material para um livro divertido. Eis um episódio que ilustra ao mesmo tempo a liberação nos costumes e a importância cultural do marxismo no início dos anos 1960. Naquela época, reunia-se no Rio de Janeiro um grupo de jovens intelectuais para ler obras de Marx. Era um tempo em que o automóvel mais desejado era o Cadillac (naqueles anos, em São Paulo, reunia-se um grupo bem mais sisudo e conhecido para ler O capital). O grupo carioca era famoso por ser frequentado por algumas belas mulheres. Um dos seus integrantes costumava dizer: “Quem não tem Cadillac pega mulher com o Manifesto Comunista”. A frase teria chegado ao conhecimento do dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues – célebre por seu talento e também por suas posições de direita –, que a mencionou numa crônica para ironizar os marxistas, segundo Jorge Miglioli. Mais um episódio engraçado, agora sobre o nacionalismo da direita truculenta, em oposição ao de esquerda: Denoy de Oliveira contou-me que, no início dos anos 1970, quando tentava liberar um filme junto à Censura Federal, ouviu certo censor berrar no recinto, referindo-se a Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos: “é um filme que, porra, deixa a gente, brasileiro, numa posição muito inferior. Aparece aquele francês com um puta pauzão e os índios brasileiros todos com uns pintinhos pequenininhos”.
O cotidiano da oposição de classe média ao regime militar foi abordado, por exemplo, num artigo de Maria Hermínia Tavares de Almeida e Luiz Weis para a História da vida privada no Brasil (1998). A expressiva liberação das mulheres no período aparece também em livros como Iara, de Judith Patarra (1992), e Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho (1998). De resto, a liberação sexual, o desejo de renovação, a fusão entre vida pública e privada, a ânsia de viver o momento, a fruição da vida boêmia, a aposta na ação em detrimento da teoria, os padrões irregulares de trabalho e a relativa pobreza, típicas da juventude de esquerda na época, são características que também remetem à tradição romântica – veja-se, por exemplo, o que diz Jerrold Seigel (1992) a respeito do perfil dos boêmios de Paris do século XIX.
Maria Orlanda Pinassi levantou uma tese sugestiva em seu livro sobre a revista Niterói – publicada em Paris, em 1836, sob responsabilidade de Gonçalves de Magalhães, Torres Homem e Araújo Porto Alegre –, considerada pelos críticos como um dos marcos do início do romantismo no Brasil. Para ela, inspirada teoricamente em abordagens sobre o romantismo de autores marxistas, como Löwy e especialmente Lukács: se a revista “lançou mão das formas românticas, o fez de maneira a torná-las instrumentos de oposição a uma realidade adversa ao capitalismo. Sem a essência anticapitalista, na verdade, da revista Niterói não emana uma visão de mundo propriamente romântica” (Pinassi, 1998, p.163-4). Noutras palavras, estando o romantismo em sua essência na contramão da modernidade capitalista, a Niterói não podia ser romântica, na medida em que a modernidade capitalista não se constituíra na sociedade brasileira da época, latifundiária e escravocrata, tampouco seus autores revelariam qualquer pendor anticapitalista. Ao contrário, sugeriam “os benefícios da economia burguesa para o Brasil” e suas artes, condenavam a escravidão, faziam a apologia da divisão do trabalho livre e da racionalidade capitalista para criticar os valores do passado colonial. Pode-se argumentar que a sociedade brasileira do século XIX estava inserida em relações internacionais, compondo uma totalidade mais abrangente, que já era capitalista em sentido pleno; por isso era possível desenvolver o romantismo artístico no Brasil, como de fato fizeram vários autores. Mas isso não esvaziaria totalmente o argumento de Pinassi, pois a realidade interna imediata com que os artistas românticos defrontavam- -se dificultava colocar-se na contramão de uma modernidade que não existia no plano nacional. Pode-se dizer sobre esse argumento, como o célebre adágio italiano: se non è vero, è ben trovato.
Trecho extraído do capítulo “Brasil, anos 60: povo, nação revolução” (Redescobridores do povo brasileiro), páginas 29 a 34.