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terça-feira, 18 de março de 2014

Censura permitiu caminho livre para filmes eróticos
Cinema em construção

O cinema brasileiro ainda está começando a amadurecer suas reflexões sobre os acontecimentos que permearam a ditadura militar. E deve avançar bastante quanto mais aquele período trágico for sendo clarificado. Caroline Gomes Leme, autora de Ditadura em imagem e som (Editora Unesp, 2013) diz, nesta entrevista exclusiva ao blog, que a densidade do cinema argentino, por exemplo, decorre do fato de o país ter feito seu acerto de contas com o passado. “Acredito que com a instauração da Comissão da Verdade, a tendência é que o cinema brasileiro apresente cada vez mais reflexões amadurecidas sobre o tema”.

Em geral, filmes da década de 1980 que utilizavam elementos sexuais em sua narrativa não encontravam resistência para serem distribuídos. Você acredita que os diretores e produtores utilizavam tais elementos para “driblar” a censura? Seria o caso de E agora, José? – Tortura do sexo, do Ody Fraga, que tinha a palavra tortura no nome e no cartaz de divulgação mostrava um homem no pau de arara?

Esta é uma questão interessante e complexa. De fato, a censura permitiu a larga proliferação de filmes com elementos sexuais ao longo dos anos 70 e 80. A chamada “pornochanchada” (rótulo que designa a princípio comédias eróticas, mas que geralmente é estendido para qualquer filme brasileiro com teor sexual) floresceu sob a ditadura. Contradição com os valores morais preconizados pelos militares? Não, se observarmos que a estrutura das pornochanchadas reitera o modelo conservador das relações de gênero, com personagens estereotipados como o conquistador viril, a virgem, a viúva fogosa, a esposa recatada, o marido traído etc. Assim, se a censura era condescendente com a ampla exploração de cenas de nudez feminina, o mesmo não se dava com filmes que tratavam da sexualidade de uma maneira que contrariasse a moral conservadora, como foi o caso do filme Os homens que eu tive (1973) de Tereza Trautman, interditado por sete anos ao colocar a liberdade sexual feminina em primeiro plano. 

Em relação especificamente a E agora, José? Tortura do sexo (Ody Fraga, 1979) pode-se dizer que ele reitera o modelo clássico da pornochanchada, construído para o olhar masculino, objetificando o corpo feminino das mais diversas formas etc. Entretanto, não se pode afirmar que Ody Fraga utilizou esses elementos para “driblar” a censura e poder inserir elementos políticos. Ody Fraga é um cineasta que já estava há muitos anos inserido no esquema de produção de cinema erótico na Boca do Lixo - sua filmografia inclui títulos como Vidas nuas (1967); O sexo mora ao lado (1975); Reformatório das Depravadas (1978); A dama da zona (1979); A Noite das Taras (1980); A Fêmea do Mar (1981); A Filha de Calígula (1981). Ou seja, o teor erótico não foi inserido para obscurecer o teor político, ele faz parte da linha de continuidade da trajetória de Ody Fraga. A questão é que esse cineasta diferenciava-se do perfil da maioria dos cineastas e profissionais da Boca, que, conforme explica Nuno César Abreu em seu livro, em geral possuíam baixa escolaridade. Fraga, ao contrário, era bastante intelectualizado, fora um dos fundadores da revista literária Sul, referência em Santa Catarina, dedicara-se ao teatro e encenara Sartre no final dos anos 40. Trata-se, portanto, de uma figura bastante ímpar e contraditória, assim como seu filme E agora, José? que combina citações literárias e denúncia da tortura a uma abjeta exploração do corpo feminino. 

É possível que o fato de ser um filme produzido na Boca, com precariedade de produção e destinado aos consumidores de cinema erótico tenha contribuído para que E agora, José? tivesse menos impacto do que Pra frente, Brasil (Roberto Farias, 1982) realizado com atores televisivos e voltado para o grande público. Entretanto, conforme menciono no livro, autores que estudaram o processo de censura afirmam que em 1979 vivia-se uma fase de “abrandamento” com a regulamentação do Conselho Superior de Censura (CSC) e José Vieira Madeira como diretor da DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas). Com a demissão de Madeira em novembro de 1981, substituído por Solange Hernandes, a censura voltou a ser mais rígida, num retrocesso que atingiu Pra Frente, Brasil. A favor de E agora, José? esteve também o Ministro da Justiça Petrônio Portella que, segundo entrevista de Ody Fraga, interferiu para a liberação do filme. Ele viria a falecer logo depois, em janeiro de 1980.

Pornochanchadas: modelo conservador
de relações de gênero 
Você acredita que as produções sobre a ditadura militar, principalmente obras fílmicas mais densas como Cabra marcado para morrer, Jango e Cidadão Boilesen podem ajudar no debate sobre o necessário acerto de contas em relação àquele período, assim como a reabertura de arquivos que nunca aconteceu? 

Sim, acredito que o cinema tem um papel relevante no debate sobre a ditadura. Seu potencial para alcançar um público amplo – mesmo que isso muitas vezes não aconteça devido aos problemas de distribuição – faz dele um meio privilegiado para o levantamento de questões e é salutar que especialmente essas obras mais densas cheguem a um número maior de pessoas, por exemplo, com exibições nas escolas. Mostras cinematográficas sobre direitos humanos e outras iniciativas culturais são elementos significativos para colocar em pauta essas questões para a sociedade. É preciso, entretanto, expandir o alcance do debate para além de nichos limitados, o que não é uma tarefa só do cinema, mas da sociedade e suas formas de organização políticas. Acho interessante lembrar também da novela Amor & Revolução produzida pelo SBT em 2011 que, não obstante todos os seus problemas e seu caráter artisticamente débil, gerou um impacto oportuno ao trazer o debate sobre a ditadura para um público mais amplo, provocando reação entre meios militares, repercussão na imprensa etc.  

O cinema brasileiro pós-2009 (último ano examindo no seu livro) continuou abordando a ditadura, como Tatuagem, de Hilton Lacerda, Marighella, de Isa Grinspum, Hoje, de Tatá Amaral, Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle e A memória que me contam, de Lúcia Murat. Isso ainda reflete a busca de acerto de contas?

Embora eu não venha acompanhando essa produção cinematográfica recente sobre a ditadura tão de perto como gostaria, tenho sido surpreendida positivamente pelas novas produções que consigo assistir. Hoje (Tata Amaral, 2011) e A memória que me contam (Lúcia Murat, 2013) são dois filmes que considero muito densos e importantes. São filmes que mostram muito clara e fortemente a presença do passado, isto é, as vivências e consequências do período do regime militar como uma questão atual, uma problemática viva, o que raramente se via no cinema brasileiro que, conforme assinalei no livro, muitas vezes deixava o espectador com a impressão de que aquele passado estava encerrado, que foi um período triste que ficou para trás sem implicações para o presente. Esses dois filmes recentes, ao contrário, mostram que a história não se encerrou, que muitas questões permanecem irresolutas social e subjetivamente. Dossiê Jango (Paulo Henrique Fontenelle, 2013) é também um filme interessante por mostrar que ainda há muito o que revelar sobre os bastidores da ditadura e a morte do presidente deposto. Acredito que com a instauração da Comissão da Verdade, a tendência é que o cinema brasileiro apresente cada vez mais reflexões amadurecidas sobre o tema. Não porque ele seja reflexo da sociedade, mas porque ele é parte desse processo social e vem acumulando novos elementos para tornar suas narrativas mais densas e complexas. 

O cinema latino-americano atual também continua abordando o assunto (em filmes como No, de Pablo Larraín e Infância clandestina, de Benjamín Ávila). Você vê diferenças entre as produções nacionais e essas outras, em relação à abordagem? O que explica a diferença, se houver?

Cinema: papel relevante no debate sobre 
o período civil-militar
Uma resposta consistente a essa pergunta teria de vir de um outro trabalho de pesquisa, mas, dentro dos limites do que eu conheço da produção latino-americana sobre as ditaduras militares, tendo a considerá-la mais madura do que a brasileira, talvez pelo fato de serem países que já avançaram mais no processo social de verdade e justiça em relação ao passado. A produção argentina é talvez a mais densa dessas cinematografias, abordando o período ditatorial sob diferentes aspectos. Um dos filmes que mais me impactou até hoje é o argentino Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) que traz para as telas o horror da tortura sem recorrer à exploração imagética da violência, sem espetacularizá-la, conseguindo transmitir uma atmosfera de apreensão e angústia poucas vezes encontrada no cinema, a meu ver. Recentemente assisti o documentário Santa Lucía (Andrea Schellemberg, 2013) que trata da cruel repressão que se abateu durante anos sobre a população da pequena cidade de Santa Lucía, na província de Tucumán, Argentina. Ao assistir ao filme e os fortes depoimentos dos camponeses, voltei a pensar numa questão que eu assinalara no livro: a quase ausência de filmes brasileiros que tratem da opressão sobre os camponeses e operários. Quando escrevi o livro, à exceção de Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), praticamente não se encontrava filmes sob este enfoque. A guerrilha do Araguaia, por exemplo, fora retratada no filme Araguaya – A conspiração do silêncio (Ronaldo Duque, 2005) de maneira que priorizava a perspectiva dos guerrilheiros, ficando em plano secundário a população camponesa que lá habitava. Mais recentemente, no entanto, foi realizado Camponeses do Araguaia – A guerrilha vista por dentro (Vandré Fernandes, 2010), documentário que infelizmente ainda não consegui assistir. E, em 2013, a TVT (Televisão dos Trabalhadores) lançou no programa ABCD em Revista o documentário Família Carvalho que aborda a resistência operária contra a ditadura. Assim, acho que a produção audiovisual brasileira está avançando nesse sentido de se focalizar para além dos estudantes e militantes de classe média. Voltando à pergunta, considero No (Pablo Larraín, 2012), um filme interessante por mostrar a lógica social triunfante no pós-ditadura, lógica em que a publicidade é a real vitoriosa na disputa entre o “Sim” e o “Não” em relação à permanência de Pinochet no poder. Já Infância clandestina (Benjamín Ávila, 2012) é um filme que trabalha na recorrente chave do “olhar da criança”, uma chave sempre comovente e com apelos melodramáticos, mas que consegue ser, a meu ver, um filme mais forte, por exemplo, que o brasileiro O Ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburger, 2006), também um bom e sensível filme, mas em cuja narrativa a ditadura aparece com menos impacto.  (Marina Valeriano Pereira)