50 anos do golpe

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segunda-feira, 31 de março de 2014

A "Civic Action" e o golpe militar de 1964

Luiz Alberto Moniz Bandeira*

Lincoln Gordon e Lyndon Johnson, que por telefone deu sinal verde à derrubada de Goulart


A partir da vitória da Revolução Cubana, que inaugurou o ano de 1960, as atenções dos Estados Unidos voltaram-se mais e mais para a América Latina. A Junta Interamericana de Defesa (JID), por sugestão dos Estados Unidos, aprovou a Resolução XLVII, em dezembro de 1960, propondo que as Forças Armadas, consideradas a instituição mais estável e modernizadora na América Latina, empreendessem projetos de “ação cívica” e aumentassem sua participação no “desenvolvimento econômico e social das nações”. Pouco tempo depois, em janeiro de 1961, o presidente John F. Kennedy, ao assumir o governo dos Estados Unidos (1961-1963), anunciou sua intenção de implementar uma estratégia tanto terapêutica quanto profilática, com o objetivo de derrotar a subversão, onde quer que se manifestasse. E o Pentágono promoveu a mutação na estratégia de segurança continental, com prioridade não mais na hipótese de guerra contra um inimigo externo, extracontinental (no caso, a União Soviética e a China), porém na hipótese de guerra contra o inimigo interno, i. e., a subversão. Essas diretrizes, complementando a doutrina da contra-insurreição, foram transmitidas, através da Junta Interamericana de Defesa (JID) e das escolas militares no Canal do Panamá, às Forças Armadas da América Latina, região à qual o presidente John F. Kennedy repetidamente se referiu como “the most critical area” e “the most dangerous area in the world”.      

O surto militarista, com a propagação nos países da América Latina de golpes desfechados pelas Forças Armadas, a partir de então, não decorreu tão somente de fatores domésticos, mas, sobretudo, da mutação que os Estados Unidos, a partir do início dos anos 1960, promoveram na estratégia de segurança do hemisfério, redefinindo as ameaças, com prioridade para o inimigo interno, e difundindo as doutrinas de contra-insurreição e da ação cívica, através da Junta Interamericana de Defesa (JID). E o objetivo da intervenção das Forças Armadas no político visou ditar decisões diplomáticas, a modificar diretrizes de política exterior, ajustá-las às diretrizes de Washington, nos países cujos governos se recusavam a romper relações com Cuba.

Embora golpes de Estados fossem comuns e quase rotineiros na América Latina, os que ocorreram a partir de 1960 não configuraram propriamente um fenômeno da política nacional argentina, equatoriana, brasileira etc., um fenômeno endógeno, como o outro verso da República presidencialista, que praticamente não possibilitava a mudança sem trauma institucional. Constituíram, na realidade, batalhas da “hidden World War Three”, um fenômeno de política internacional, resultante da guerra fria, que se alastrava no continente. E aí, já não bastava a técnica do coup d’État, mas a técnica para criar as condições objetivas, tanto econômicas quanto sociais e políticas, que compelissem as Forças Armadas a desfechá-lo. E a essa tarefa a CIA se dedicou, através de “spoiling operations”, operações de engodo, uma das quais consistia em penetrar nas organizações políticas, estudantis, trabalhistas e outras para induzir artificialmente a radicalização da crise, mediante longo período de agitação e profunda desorganização social, aguçamento da luta de classes, de maneira a solapar as bases sociais e políticas de sustentação do governo e a favorecer sua derrubada por meio de um golpe militar.

No Brasil, desde que os comandantes das Forças Armadas, em agosto de 1961, não conseguiram impedir que o vice-presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assumisse o governo, em virtude da renúncia do presidente Jânio Quadros, a CIA começou a dar assistência aos diversos setores da oposição que conspiravam para derrubá-lo. Em 1962, a CIA gastou entre US$ 12 milhões e US$ 20 milhões, financiando a campanha eleitoral de deputados de direita, através de organizações que seus agentes criaram, principalmente o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a Ação Democrática Parlamentar e outras, todas identificadas com o rótulo de “democrática”. Os resultados não foram bons para a CIA. O número de deputados, cuja campanha o IBAD, a ADEP e outras frentes da CIA elegeram, não compensou. Mas as spoiling operations prosseguiram, com o objetivo de solapar mais e mais as bases de sustentação do governo e criar as condições objetivas para o putsch.

Em meados de 1963, o Pentágono tratou de elaborar vários planos de contingência, a fim de intervir militarmente no Brasil, caso o presidente João Goulart, reagindo às pressões econômicas dos Estados Unidos, inflectisse mais para a esquerda, ultranacionalista, no estilo dos governos dos presidentes Getúlio Vargas ou Juan D. Perón. Mais ou menos à mesma época, em 13 de junho de 1963, a Embaixada do Brasil em Washington, sob a chefia do embaixador Roberto Campos, enviou ao Itamaraty, um documento - “Política Externa Norte-americana - Análise de Alguns Aspectos”, Anexo 1 e único ao Ofício nº 516/900. (Secreto) – no qual comentou que as pressões do Pentágono estavam a levar os Estados Unidos a reconhecer e a cultivar "relações amistosas com as piores ditaduras de direita”, pois “do ponto de vista dos setores militares de Washington tais governos são muito mais úteis aos interesses da segurança continental do que os regimes constitucionais”.

Os agentes da CIA, entrementes, executavam as mais variadas modalidades de operações políticas (PP), covert actions e spoiling actions, visando a radicalizar as contradições e sociais e políticas que se desenvolviam no Brasil. Em 12 de setembro de 1963, cabos, sargentos e suboficiais, principalmente da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antônio Prestes de Paulo, sublevaram-se, em Brasília, e ocuparam os prédios da Polícia Federal, da Estação Central da Rádio Patrulha, da Rádio Nacional, do Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos. O movimento e serviu como provocação, uma spoiling action, destinada a criar dificuldades e colocar a oficialidade das Forças Armadas em favor do golpe de Estado. Poucos dias depois, em 30 de setembro, o Departamento de Estado esboçou uma proposta política de curto prazo para o Brasil, com um programa clandestino de penetração no meio militar (o que, aliás, já ocorrera) e a recomendação de “apoio e imediato reconhecimento de qualquer regime que os brasileiros estabeleçam para substituir Goulart”.

Em meio a alguns atentados terroristas, denúncias de infiltração comunista no governo, nas Forças Armadas etc., a campanha da CIA prosseguiu, instigando greves tanto nas cidades, como nas fazendas, e outras ações, cada vez mais radicais, de modo que pudessem caracterizar a ocorrência de uma guerra revolucionária, denunciada pelo deputado Francisco Bilac Pinto, da UDN, em vários discursos na Câmara Federal, nos quais acusava o presidente Goulart de apoiá-la. E, a fim de que se afigurasse uma insurreição comunista em andamento, entre 25 e 27 de março de 1964, José Anselmo dos Santos, conhecido como “cabo Anselmo”, mas na verdade um estudante universitário, infiltrado entre os marinheiros pelo Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), em colaboração com a CIA, liderou centenas de marinheiros, que decidiram comemorar o aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, desacatando a proibição do ministro da Marinha, almirante Sílvio Mota, e correram para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, a fim de comprometer os trabalhadores com o movimento. Os fuzileiros, enviados para invadir o sindicato, desalojar e prender os marinheiros, terminaram por aderir ao motim. O Exército teve intervir para sufoca-lo.

O fato de Anselmo dos Santos e outros induzirem a marujada a refugiar-se no Sindicato dos Metalúrgicos, explorando e radicalizando o descontentamento existente, devido ao fato de que suas reivindicações não eram atendidas pelo Almirantado, visou a encenar uma repetição da revolta no encouraçado Potemkin, que desencadeou na Rússia a revolução de 1905. Esse motim agravou os efeitos que a revolta dos sargentos já havia produzido. Empurrou o resto dos oficiais legalistas para o lado dos conspiradores. Não podiam aceitar a quebra da hierarquia e a disciplina nas Forças Armadas. Goulart já havia perdido então quase todo o respaldo militar. Entre os dias 31 de março e 1° de abril, ele ouviu de muitos oficiais superiores que: “os oficiais não estão contra o seu presidente, mas, sim, contra o comunismo”. Os generais comandantes das grandes divisões, embora leais ao governo e à Constituição, Goulart posteriormente comentou, “não contaram, para uma ação imediata, com a colaboração dos escalões intermediários, instrumentos básicos para qualquer operação eque estavam contaminados pela propaganda do perigo comunista, no qual honestamente acreditavam”. Os aparelhos ideológicos de dominação mostraram sua eficácia. O fantasma do comunismo servia como pretexto para o golpe de Estado. E as condições objetivas estavam tecnicamente criadas.

Todas as alternativas foram excogitadas pela CIA. Quatro dias antes do golpe, o embaixador dos Estados Unidos Lincoln Gordon informou a Washington: “nós podemos vir a solicitar recursos suplementares modestos para outros programas de ações encobertas em futuro próximo” e demandou o envio de petróleo e de lubrificantes para facilitar as operações logísticas dos conspiradores e o deslocamento de uma força naval visando a intimidar as forças que apoiavam Goulart.

Em 30 de março, a estação da CIA no Brasil transmitiu a Washington, segundo as fontes em Belo Horizonte, que “uma revolução levada a cabo pelas forças anti-Goulart terá curso esta semana, provavelmente em poucos dias” e marcharia para o Rio de Janeiro. No mesmo dia 30, no momento em que o presidente João Goulart discursava para os sargentos no Automóvel Club, o secretário de Estado, Dean Rusk, leu para o embaixador Lincoln Gordon, por telefone, o texto do telegrama n° 1.296, informando-o de que, como os navios, carregados de armas e munições, não podiam alcançar o Sul do Brasil antes de dez dias, os Estados Unidos poderiam enviá-las por via aérea, se fosse assegurado um campo intermediário em Recife ou em qualquer outra parte do Nordeste, capaz de operar com grandes transportes a jato, e manifestou o receio de que Goulart, o deputado Ranieri Mazzilli, os líderes do Congresso e os chefes militares alcançassem naquelas poucas horas uma acomodação, fato que seria “deeply embarrassing” para o governo norte-americano e “nos deixaria marcados por uma desastrada tentativa de intervenção”.

A oposição tinha, decerto, uma dinâmica interna própria, determinada pelas contradições econômicas, sociais e políticas, que se aguçaram no Brasil, com o forte impulso da industrialização, durante os anos 1950. De um lado o proletariado urbano havia aumentado e adquirido maior peso político, enquanto, do outro, o grande fluxo de investimentos estrangeiros modificou a própria composição do empresariado, que passou a integrar em larga proporção executivos de empresas americanas e de outras nacionalidades. Vários grupos de civis e militares também conspiravam e com os quais o então coronel Vernon Walters, agente da DIA e adido militar na Embaixada dos Estados Unidos, mantinha contacto, encorajando-os.

O motim dos marinheiros, em 26 de março, constituiu a provocação que o general Humberto de Alencar Castelo Branco esperava, a fim de induzir a maioria dos militares a aceitar a ruptura da legalidade, em face da quebra da disciplina e da hierarquia nas Forças Armadas. O golpe estava previsto para depois da Marcha da Família com Deus pela Propriedade, no Rio de Janeiro, marcada para 2 de abril e financiada pela CIA, como a ocorrida dias antes em São Paulo.  Porém, o general Olímpio Mourão Filho, comandante da IV Região Militar, com sede em Juiz de Fora (Minas Gerais), afoitou os acontecimentos.

Os militares brasileiros, decerto, não teriam desfechado o golpe de Estado se não soubessem que contariam com a cobertura dos Estados Unidos. Tornava-se necessário, porém, que o golpe tivesse uma aparência de legitimidade, conforme Dean Rusk enfatizara, de forma que os Estados Unidos pudessem fornecer a ajuda militar aos sediciosos. E de seu rancho no Texas, no dia 31 de março, o presidente Lyndon B. Johnson, por telefone, deu a luz verde ao secretário de Estado assistente para a América Latina, Thomas Mann, para a deflagração do golpe contra o governo de Goulart: “Eu penso que devemos tomar toda medida que pudermos, estar preparados para tudo o que for preciso fazer”, i. e., até mesmo a intervenção militar, se necessário fosse. E acentuou: “We just can’t take this one.”

O golpe de Estado estava consumado, coadjuvado pelo senador Auro de Moura Andrade, que declarou, ilegalmente, a vacância da Presidência, sem que Goulart houvesse renunciado e ainda em território nacional. O deputado Pascoal Ranieri Mazzilli, o primeiro na linha de sucessão, como presidente da Câmara Federal, assumiu o governo. Não se observou qualquer formalidade legal. Esse aspecto preocupou o secretário de Estado, Dean Rusk. A investidura de Ranieri Mazzilli na presidência da República não tinha qualquer suporte legal e a bancada do PTB não a reconhecera. Não obstante, o embaixador Lincoln Gordon recomendou ao Departamento de Estado o reconhecimento do novo governo, mesmo sabendo-o ilegítimo e inconstitucional, e o presidente Lyndon B. Johnson telegrafou imediatamente a Mazzilli, a felicitá-lo pela sua investidura na chefia do governo. O reconhecimento diplomático era um dos elementos necessários ao processo de estabelecimento da autoridade do governo. E o objetivo da pressa fora justificar, perante a opinião pública dos Estados Unidos e dos demais países, o atendimento a qualquer pedido de auxílio militar por parte do novo governo, emanado do golpe de Estado.

O golpe de Estado que derrubou em 1964 o presidente João Goulart e se autoproclamou “Revolução Redentora” tipificou o conjunto das operações que a CIA desenvolveu e aprimorou, procedimentos com os quais ela conseguiu desestabilizar o governo e permitir a sublevação dos militares, a pretexto de restaurar a ordem e evitar o comunismo. No seu diário, o então agente da CIA Philip Agee, estacionado em Montevidéu, assinalou que a queda de Goulart fora, “sem dúvida, devida amplamente ao planejamento cuidadoso e a campanhas consistentes de propaganda que remontavam pelo menos à eleição de 1962”. Goulart sabia-o, bem como que os Estados Unidos se dispunham a intervir militarmente no Brasil. Ao chegar a Brasília, no dia 1° de abril, disse ao deputado Tancredo Neves que a CIA havia inspirado a sublevação e reiterou seu propósito de não render-se. Se concordasse em renunciar às reformas e restringir os direitos dos trabalhadores, acrescentou, continuaria no governo. Mas não o faria. O governo pelo governo não lhe interessava. E seguiu para o Rio Grande do Sul onde igualmente percebeu que não havia condições de resistência.

A satisfação foi tão grande em Washington que, no dia 3 de abril, às 12h26, o secretário de Estado assistente para a América Latina, telefonou para o presidente Lyndon B. Johnson e disse-lhe: “Espero que esteja tão satisfeito em relação ao Brasil quanto eu.” Lyndon B. Johnson respondeu: “Estou.” Thomas Mann continuou: “Acho que é a coisa mais importante que aconteceu no hemisfério em três anos.” E Lyndon B. Johnson arrematou: “Espero que nos deem algum crédito em vez do inferno.”

Versão integral do artigo publicado em 29 de março pelo jornal O Estado de S. Paulo online.

*Luiz Alberto Moniz Bandeira é doutor em ciência política, professor titular de história da política exterior do Brasil na Universidade de Brasília (aposentado), tem mais de 20 obras publicadas, entre as quais O Governo de João Goulart – As lutas sociais no Brasil (1961-1964), Presença dos Estados Unidos no Brasil, Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque) e A Segunda Guerra Fria - Geopolítica e dimensões estratégicas dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio), e várias foram editadas em outros países, como Argentina, Chile, Alemanha, China, Rússia e Portugal. Mora na Alemanha.