A verdadeira democracia

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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Maria Helena Moreira Alves


Foto: Carlos Latuff
"Caveirão": terror cotidiano nas comunidades cariocas


Destaque desta Bienal


Entregamos aos governadores verdadeiros exércitos particulares que, muitas vezes, são usados para defender os interesses de políticos corruptos e seus amigos

“Um povo que não conhece a sua História está condenado a repeti-la” (Karl Marx). Dizem alguns que esta frase é simplesmente um “chavão”, outros acreditam que a máxima explica até a corrupção, citando, por exemplo, o velho lema político do “rouba, mas faz”.  Entretanto, repito a famosa frase de Marx por sua atualidade neste triste mundo e para enfatizar o que me preocupa e aterroriza: a persistência de crimes como a tortura, os desaparecimentos, as mortes não investigadas, o contínuo poder dos ricos e dos políticos corruptos, o contínuo sofrimento de um povo pobre e abandonado, perseguido sempre, e defendido por poucos.  

Explico melhor: nós, brasileiros, nos esquecemos de várias coisas muito sérias:
1. Que tivemos no Brasil uma escravidão de milhões de pessoas, raptadas, transportadas em porões de navios, presas em senzalas, torturadas e forçadas a trabalhar, muitas vezes até a morte.  Esquecemos inclusive que AINDA HÁ ESCRAVIDÃO em muitos pontos deste triste país.
2. Esquecemos que tivemos períodos de ditadura, o mais longo deles entre 1964 e 1985.  E esquecemos de desvendar os segredos desses regimes, de buscar entre os poderosos e os culpados por crimes cometidos sob seus mantos, como a tortura e os desaparecimentos de presos políticos.  Não por acaso somos o último país da América Latina a, finalmente, formar uma Comissão de Verdade, questionada justamente por aqueles (muitos) que têm medo do que pode vir à tona.  

3. Esquecemos de mudar detalhes da Constituição de 1988, para que se torne DEMOCRÁTICA MESMO, garantindo efetivamente os direitos civis de todos os cidadãos e cidadãs, independentemente de status social, raça, idade, lugar onde mora.  Porque, neste país, a Constituição de 1988 é flagrantemente desrespeitada todos os dias pelos poderosos que controlam o Estado, pelas polícias, que atuam sempre contra os pobres.  Para estes não existem os direitos civis que valem para os que não moram nas periferias e favelas espalhadas.  Os pobres não têm sequer o mais importante direito garantido desde a MAGNA CARTA:  o de serem considerados inocentes até prova em contrário.  
4. Esquecemos estes direitos sim.  Do contrário, como podem a polícia, os políticos e a mídia, inclusive, tão facilmente informar que uma pessoa morreu porque era “traficante”?  Ou até, como aconteceu no Rio apenas alguns dias atrás, quando a PM, dentro de um Caveirão (desculpe, agora chamado Pacificador), matou com um só tiro de fuzil duas mulheres, uma mãe e uma avó, com a desculpa de que eram PARENTES de um traficante? Agora ser parente também é crime.  Não somente ignoram o direito do pai, suposto traficante, de ser julgado, como criminalizam as famílias também. Há muitos exemplos semelhantes, como o da família da Gracilene, cujo filho, Mateus, foi assassinado com uma bala na cabeça quando saía de uma igreja na comunidade onde moravam para comprar pão, em 2008.  Perseguida desde então, teve de se mudar.  Mais recentemente, a família do Amarildo, desaparecido na Rocinha quando era levado a uma UPP por policiais militares, também foi acusada de ser cúmplice de traficantes.  Posso citar milhares de casos, literalmente.  

5. Esquecemos do direito à vida, e à justiça para todos.  Isso porque também esquecemos que na ditadura militar milhares foram torturados e provavelmente há muito mais desaparecidos do que oficialmente se reconhece. E esquecemos de mudar a Polícia Militar, que reprimia a oposição, em vez de proteger a população. A PM continua militarizada, continua reprimindo, continua impune. Só passamos o controle da polícia para outras mãos: antes a PM estava sob o comando do Exército, hoje obedece aos governadores dos estados.  Portanto, com este grave erro na Constituição de 1988, na verdade entregamos aos governadores verdadeiros exércitos particulares que, muitas vezes, são usados para defender os interesses de políticos corruptos e seus amigos.  

Então, fica a pergunta final.  O que fazer?  Realmente creio que temos de rever os fundamentos desta CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA e verificar onde erramos para chegarmos a uma situação que combina poucos direitos, efetivamente, e muita violência contra o povo – que não tem como se defender.  Melhor dito, que NÃO PODIA SE DEFENDER.  Porque, depois deste ano, e especialmente depois dos eventos do último dia 15 de agosto, que ficará na História, o povo perdeu o medo.  Perdeu o medo até do CAVEIRÃO.  Foi impressionante ver mulheres, nesse dia, se organizarem para impedir que a PM entrasse com o Caveirão em sua comunidade Quitanda em Costa Barros.  Chegaram a empurrar uma caçamba de cimento e entrar dentro dela para impedir sua passagem.  Duas mulheres entregaram suas vidas neste ato de coragem.  Mas, disse a polícia, não importa, eram esposa e avó de um traficante.                                

Deixo aqui uma última reflexão, que consta do livro Vivendo no fogo cruzado: moradores de favelas, traficantes e violência policial no Rio de Janeiro, publicado pela Editora Unesp.  No prólogo fiz uma advertência que repito aqui:  um Estado de exceção anula o Estado de direito.  Se a lei não vale para alguns, no caso os mais pobres, também deixará de valer para todos.  Estou preocupada.  Esquecemos muito de nossa História e estamos condenados a repeti-la se não tivermos a coragem de resistir. Seguindo o exemplo dos moradores das favelas, das mães coragem, das mulheres que estão perdendo o medo, enfrentando o perigo, em uma nova e histórica LISÍSTRATA, moderna, no Rio de Janeiro.

* Maria Helena Alves é professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). PhD em Ciências Políticas do MIT (Massachusetts Institute of Technology), especialista em Direitos Humanos e Política Internacional e autora, com Philip Evanson, de Vivendo no Fogo cruzado. Para saber mais sobre o livro, acesse http://bit.ly/14kYwDc