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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Reflexões desdobradas de O direito de voto: pensando 
sobre feminismo hegemônico*

“Com a leitura de O direito de voto, pude entender como se deram, ao longo dos séculos XIX e XX, as disputas de poder de grupos oprimidos que, fragmentados em sua forma de sofrer opressão, atuaram também como opressores de outros”

Por Nara Lasevicius Carreira*

Pelo direito de voto das mulheres brancas
Alguns meses atrás, fiz a preparação do livro O direito de voto: A controversa história da democracia nos Estados Unidos, que saiu há pouco pela Editora Unesp. Pelo subtítulo, já sabia que vinha coisa boa. O professor de História Alexander Keyssar desmonta, capítulo a capítulo, o castelo de cartas do mito da democracia estadunidense, mostrando que o longo processo de consolidação do sufrágio não foi nada bacana, e é sobre um dos aspectos desse processo que eu gostaria de comentar um pouquinho.
Algo que chamou minha atenção durante o trabalho com o texto de Keyssar foi a exposição das articulações do feminismo na luta pelo voto feminino. Sendo eu mesma feminista, a análise de Keyssar veio como mais um aviso de que, engajada em tal movimento, é preciso estar sempre à espreita dos diversos caminhos que se formam, pois as lutas identitárias jamais são unas. Explico: com a leitura de O direito de voto, pude entender como se deram, ao longo dos séculos XIX e XX, as disputas de poder de grupos oprimidos que, fragmentados em sua forma de sofrer opressão, atuaram também como opressores de outros. Estou falando de como todo um movimento de mulheres brancas, em sua reivindicação de sufrágio, não só ignorou as demandas da população negra como também lutou contra elas. O argumento? Como poderiam permitir que os negros, “degradados” pela opressão, no dizer de uma sufragista, fossem empoderados antes das brancas “instruídas e patrióticas”?
Se a opressão racial empreendida por quem sofre opressão de gênero já é muito problemática e não pode, em hipótese alguma, ser legitimada, o que dizer da completa omissão das demandas das mulheres negras nesse tipo de argumento? O impulso para este texto que escrevo veio de uma vontade de discutir esse livro desde meu primeiro envolvimento com ele, mas tornou-se concreto, palavra na tela, depois de alguma reflexão sobre o desserviço que muitas vezes o feminismo hegemônico (leia-se branco, cisgênero e de classe média) presta a feminismos “outros” (entre aspas porque a alteridade pode sempre ser relativizada, em razão de sua própria natureza). Sinto imensa vergonha como mulher branca, cisgênero e de classe média que, colocando-me como feminista, deparo com tamanho silenciamento sustentado por “meu grupo”. Já passou da hora de quem se diz contra opressões rever suas próprias práticas e reconhecer os próprios privilégios dentro de uma cadeia opressora (sim, o sofrimento das mulheres brancas, cis e de classe média – que é real – não se compara ao sofrimento das mulheres negras, trans e pobres). Privilégio traz poder e, como pessoas comprometidas com a igualdade e o empoderamento, é urgente que usemos dele para sair de cena quando for preciso, respeitar o protagonismo de lutas que não nos pertencem (mas com as quais simpatizamos) e unir forças para que espaços sejam ocupados, vozes sejam ouvidas. 

Em tempo: uma preciosa dica de leitura diária para aprender com a luta do “outro” e colaborar com ela (em vez de seu apagamento ou, por outro lado, sua apropriação) é o site das Blogueiras Negras.

*Publicado originalmente no blog da Tikinet Edição

*Nara Lasevicius Carreira é formada em Letras pela Universidade de São Paulo e pesquisadora de educação antirracista. Alguns de seus interesses são em Literatura, Estudos Culturais, Dança e Artes Plásticas e Visuais.