quinta-feira, 3 de abril de 2014
Os movimentos de rua como espetáculo e contra-espetáculo no Brasil de 2013
É possível que a difusão do pensamento situacionista, representado principalmente por Guy Debord, tenha influenciado de algum modo uma parte mais bem informada da juventude. Mas não cabe superestimar essa influência. Os movimentos não tiveram um aspecto claro antissistêmico, tal como proposto pelos situacionistas, nem se reivindicou qualquer influência de Debord. Apresentaram, porém, aspectos que fazem lembrá-los, ainda que de modo espontâneo e não consciente, o que não deixa de expressar a diversidade do fenômeno.
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Ressignificação de propagandas, foi o que se viu nas ruas do país |
Uma das principais características das manifestações nas ruas do Brasil em junho último foi o uso da internet e das redes sociais para a mobilização e também para a divulgação dos protestos, com lugar destacado para as imagens. Muitos fotografavam, filmavam e em seguida disponibilizavam tudo nas redes sociais como o Facebook, não raro colocando-se como protagonistas pessoais da história. Nisto se assemelharam a outros movimentos internacionais recentes, como a primavera árabe, num mundo dominado pelo audiovisual que ganhou novo impulso com a disseminação da internet.
Isso leva a pensar sobre a sociedade contemporânea das imagens, que Guy Debord chamou ainda em 1967 de “sociedade do espetáculo”, entendida como aquela em que o capital se torna também imagem, em que as imagens medeiam as relações sociais, com a “alienação do espectador” em benefício do objeto contemplado. O espetáculo seria o momento em que a mercadoria tornada fetiche ocupou totalmente a vida social, na qual o consumidor torna-se consumidor de ilusões, agora sobretudo na forma de imagem. O espetáculo seria a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias.
Um Estado capitalista e burocrático alienaria o trabalhador em sua vida cotidiana, fechando-o numa realidade de imagens e “urbanismo repressivo”, no qual a lógica da mercadoria seria imposta como racionalidade primeira do sistema, ganhando um contorno simbólico para além do que Marx chamara de fetichismo da mercadoria. A burocracia imporia sua marca não só na cadência do trabalho, mas também no lazer e na ideologia, reificando os indivíduos, que perderiam o controle de suas criações, dominados pelos objetos a exibir-se no mercado como um espetáculo.
Debord foi um dos líderes principais do pequeno grupo conhecido como situacionista, que conseguiu irradiar suas ideias especialmente nas manifestações de 1968 na França. Para os situacionistas, não bastaria subverter a ordem econômica, o essencial seria emancipar a totalidade da vida do indivíduo, que deveria criar livremente sua vida cotidiana, sem falsas necessidades impostas pela sociedade do espetáculo. Os conselhos autônomos nas empresas, escolas e universidades deveriam deter o poder, exercer a democracia direta e abolir a sociedade burocrática, destruindo a separação entre tempo livre e tempo de trabalho, que seria substituído por um novo tipo de atividade livre, num mundo de festa, em que a vida se tornaria uma fruição agradável.
Em suma, os situacionistas propunham a ruptura com a condição de expectador passivo imposta pela sociedade do espetáculo, para que os trabalhadores se tornassem senhores ativos de todos os momentos da vida, integrando o maravilhoso ao dia-a-dia, introduzindo a arte na vida cotidiana, dando-lhe um lugar revolucionário ativo. Mas o que teria isso a ver com as manifestações de junho no Brasil?
Difícil medir a influência dos situacionistas, mas alguns dados podem ser considerados. A sociedade do espetáculo só foi traduzida e difundida tardiamente no Brasil. Sua primeira edição data de 1997, pela editora Contraponto, propriedade do conhecido militante e intelectual César Benjamin, que foi um jovem preso político no tempo da ditadura. Em 2012, chegou à 12ª. reimpressão, deve ter vendido ao menos 25 mil exemplares, número alto para os padrões nacionais. Depois desse livro, vieram outros dos situacionistas, em geral publicados pela Conrad, conhecida pela difusão de mangás, histórias em quadrinhos e outras publicações voltadas a um público juvenil alternativo. A biografia de Debord escrita por Anselm Jappe saiu em 1999 pela ed. Vozes, católica, o que dá a medida do aspecto multifacetado da esquerda brasileira.
É possível que a difusão do pensamento situacionista tenha influenciado de algum modo uma parte mais bem informada da juventude. Mas não cabe superestimar essa influência. Os movimentos de rua de 2013 no Brasil não tiveram um aspecto claro antissistêmico, tal como proposto pelos situacionistas, nem se reivindicou qualquer influência de Debord. Mas apresentaram aspectos que fazem lembrá-los, ainda que de modo espontâneo e não consciente, o que não deixa de expressar a diversidade do fenômeno.
De um lado, as manifestações parecem não ter rompido com a lógica do espetáculo, antes apresentaram aspectos que tenderiam a reafirmá-la, pois houve certa tendência para que cada um individualmente cultuasse a própria imagem nas ruas, aparecendo em fotografias e filmes feitos em seus celulares, ipads e outros meios, como se fosse uma celebridade a prestigiar a última moda de participação. Nesse sentido importaria mais a imagem de protesto do que as reivindicações políticas, mais aparecer no Facebook do que qualquer outra coisa, expressando uma espécie de massificação da cultura da celebridade, em que os indivíduos exibem sua imagem como mercadoria valorizada simbolicamente.
Contudo, os movimentos também permitem questionar a teorização sobre a sociedade do espetáculo, e talvez apontem para a possibilidade de superação desse tipo de sociedade. O uso mobilizador do Facebook dá o que pensar: 62% dos manifestantes entrevistados pelo Ibope em todo o país no dia 20 de junho declaram que se informaram sobre os protestos por esse meio. Isso põe em dúvida a suposta passividade contemplativa envolvida na espetacularização da vida social, na medida em que meios tidos como alienantes são usados para a mobilização popular.
Em boa medida com caráter espontâneo – ao que parece, já que ninguém as reivindicou – materializaram-se nas ruas algumas técnicas situacionistas de expressão, herdadas em parte dos surrealistas. A começar pela dérive (deriva), técnica baseada na ideia de se deixar levar – não nas associações verbais, como na psicanálise – mas no espaço geográfico, por atos, gestos, passeios e encontros, a fim de questionar a rotina do “urbanismo repressivo” das megalópoles. Aliás, o questionamento radical ao cotidiano urbano e seus problemas como os de transporte seria outro ponto a aproximar as manifestações de 2013 dos situacionitas, herdeiros por sua vez tanto da Internacional Letrista como de Henri Lefebvre.
Algumas passeatas sem rumo definido, como aquela de São Paulo no dia 17 de junho, aproximaram-se da técnica da dérive: as câmeras de televisão instaladas em helicópteros não sabiam que cortejo filmar, já que eles se espalhavam desordenada e festivamente por muitos pontos da cidade. É um exemplo do que podem ter sido explorações criativas do espaço urbano, no sentido proposto por Debord, mas talvez também expressão da falta de unidade e comando do movimento como um todo.
Outra técnica divulgada pelos situacionistas é o détournement (desvio): cada gesto, escrita ou fala é retirado conscientemente de sua destinação de objetos e imagens conexos à sociedade burguesa – caso de obras de arte, histórias em quadrinhos, publicidade, fotos pornográficas – para inseri-las numa perspectiva crítica. Esse uso do material espetacular em outro contexto ocorreu nas ruas do Brasil, por exemplo, com a ressignificação de propagandas.
A Fiat preparou um comercial de automóvel com uma música para divulgar a Copa das Confederações de Futebol, que se realizou em junho no Brasil. Falcão, do grupo “O Rappa”, compôs a música cujo refrão “vem pra rua” convocava os torcedores para sair de casa e torcer pela seleção brasileira. Os manifestantes trataram de fazer o desvio, aproveitaram a canção não no sentido de divulgar o evento, mas de chamar as pessoas às ruas para contestá-lo. A canção tornou-se o hit do movimento, como se pode ver em inúmeros clips na internet, divulgados por exemplo no YouTube, onde se pode ver a propaganda original.
Outra propaganda “desviada” pelo movimento foi a do whisky Johnnie Walker. O filme, criativo e muito divulgado na televisão, mostra um gigante de pedra brotar da paisagem paradisíaca do Rio de Janeiro, levantar e sair caminhando. Ao final, aparece na tela a frase “O gigante não está mais adormecido”, e depois o bordão tradicional da empresa, associado à marca do país: “keep walking, Brazil”.
A metáfora remete a um dos versos do hino nacional, que fala em “gigante pela própria natureza”. A sabedoria popular associa este verso a outro do hino: “deitado eternamente em berço esplêndido”, de modo que se identifica o país com um gigante adormecido, pleno de potencialidades que não são cumpridas. A grandeza ufanista divulgada originalmente no comercial transformou-se em uma das faixas mais presentes nas ruas, que diziam “o gigante acordou”, referindo-se às manifestações. Algo que pode ser interpretado ao mesmo tempo como inversão contestadora da propaganda num sentido crítico, fazendo o desvio do tema original, mas também como a recuperação de um dos lemas dos apoiadores do golpe de 1964, de um “Brasil profundo”, conservador, que se levanta quando é provocado.
Entre 19 e 21 de junho a expressão “vemprarua” teve mais de 160 mil menções nas redes sociais e “ogiganteacordou”, cerca de 100 mil, conforme reportagem da BBC. Talvez o uso desviante dos dois comerciais seja uma demonstração de que a linguagem amplamente hegemônica para as novas gerações é a da propaganda, a única que muitos conhecem. Seria, portanto, de esperar que se manifestassem criticamente por meio dessa linguagem, que então não seria mais necessariamente espetacular e passiva, mas potencialmente reinventada como um contra-espetáculo a usar as imagens num sentido mobilizador.
*Artigo publicado originalmente no Portal de Historia da Fundación Mapfre