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terça-feira, 6 de maio de 2014

Viver de herança

Vladimir Safatle

Imposto sobre herança no Brasil normalmente não passa dos 4%
Eis mais um capítulo do "Maravilhoso Livro Onde se Narram os Deleites de Ser Rico em Solo Brasileiro".

Em um estranho país, não muito distante daqui, quando as pessoas morrem e deixam heranças, seus descendentes precisam pagar impostos que, caso o indivíduo seja muito rico, podem chegar a 40% do valor total dos bens.

O raciocínio por trás da taxação pode ser compreendido até mesmo por um liberal. A partir de um certo limite, mesmo os defensores da chamada "meritocracia" reconhecem que deixar herança não passa de uma forma de perpetuar desigualdades e estimular a criação de uma classe parasitária de rentistas. Melhor usar esse dinheiro para financiar serviços públicos ou obrigar empresas a abrir fundações baseadas em filantropia.

Esse estranho país onde o Estado pode levar até 40% de sua herança não é uma república comunista que faria parte, juntamente com a Coreia do Norte, Cuba, Venezuela, Baal e Belzebu, do Império do Mal. Trata-se dos Estados Unidos da América, do qual suponho que todos já ouviram falar.

Já em terras brasileiras, o máximo que acontecerá é ter de pagar o Imposto sobre Transmissão, Causa Mortis e Doação (IPCMD) que varia de Estado a Estado, mas que normalmente não passa de 4%.

Aqui, nenhuma necessidade de abrir fundações e partilhar sua fortuna.

Dessa forma, o desenvolvimento produzido no Brasil não circulará, mas irá parar sempre nas mãos das mesmas famílias especializadas em "fazer negócios" (normalmente com benesses estatais) e passar heranças para seus filhos que poderão, se quiserem (e normalmente eles preferem que assim seja), viver de rendas explorando aluguéis de uma rede infindável de imóveis.

O Brasil tem um desafio decisivo para seu futuro: criar um segundo ciclo de políticas de combate a desigualdade por meio da consolidação de serviços públicos gratuitos e de qualidade.

Outros países latino-americanos passam atualmente por desafios semelhantes, como o Chile. O mesmo Chile que discute hoje como fazer os ricos e as grandes fortunas pagarem serviços para os mais pobres.

No entanto, os discursos eleitorais que atualmente circulam no Brasil, em vez de apresentarem propostas de como financiar mais escolas e hospitais públicos, parecem competir para ver qual é o mais amigável ao mercado e desconectado em relação ao descontentamento popular.

Talvez porque, entre os que pensam tais discursos existam pessoas que acham tão normal "viver de herança" que não passa pela cabeça deles que o país seria mais justo se adotasse práticas de partilha que já mostraram sua utilidade na história. 

*Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo em 6 de maio de 2014