quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Tom Zé, Coca-Cola, Copa e Protesto*
Marcelo Ridenti
 |
A aura de avesso ao mercado seria contingência da carreira de Tom Zé? |
"Era surpreendente um artista tido como anticomercial anunciar o famoso refrigerante, o tropicalista internacionalista irredutível cair num discurso nacional, e ademais entrar na onda da Fifa na divulgação da Copa do Mundo"
No último semestre, as redes de televisão mostraram para todo o Brasil uma propaganda da Coca-cola para divulgar a Copa do mundo de 2014. Muito bem realizada, apresenta uma voz em off que faz um longo discurso de exaltação do Brasil, da Fifa e, claro, da marca da bebida. Termina com os dizeres “juntos vamos fazer a Copa da Fifa ser a copa de todo mundo”.
Ao ouvir pela primeira vez, pensei comigo: que abuso, arrumaram um narrador com a voz parecida com a do Tom Zé! A surpresa veio em seguida, quando descobri que era mesmo a voz dele. A decepção de seus fãs logo ganhou as redes sociais. Afinal, era surpreendente um artista tido como anticomercial anunciar o famoso refrigerante, o tropicalista internacionalista irredutível cair num discurso nacional, e ademais entrar na onda da Fifa na divulgação da Copa do Mundo. Nada disso combinava com o ícone da cultura e da canção alternativa, avessa à mercantilização.
O compositor popular nasceu em Irará, na Bahia, em 1936. Portanto, já tem bem mais de 70 anos, mas suas posições iconoclastas e de vanguarda tendem a atrair a admiração também de muitos jovens. Antes de 1964, foi ligado ao Partido Comunista e integrante em Salvador do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Tornou-se em seguida crítico das vertentes tradicionais de esquerda no âmbito da política e da cultura. Ficou famosa uma frase irônica dele sobre Chico Buarque, quando ainda eram jovens: ele chamou o colega, então já célebre, de “meu avô”. Engajou-se no projeto musical tropicalista, ainda que em 1968 tenha vencido o festival da tv Record com uma canção bela mas convencional sobre a cdade de São Paulo, onde vive até hoje. Ao contrário de outros ex-integrantes do movimento tropicalista, sempre manteve o tom alternativo e experimental dos primeiros anos, o que lhe valeu certo ostracismo, embora fosse reconhecido em círculos restritos. A situação mudou a partir dos anos 1990, quando o astro musical pop britânico David Byrne “descobriu” Tom Zé e lhe proporcionou divulgação internacional.
Dada a calmaria política dos últimos anos, associada a uma aparente aceitação das políticas de integração social pelo consumo, parecia que o episódio da locução do comercial não teria maiores consequências para Tom Zé. Entretanto, muitos fãs decepcionaram-se e até hostilizaram o compositor, que escreveu uma resposta postada no Facebook, justificando que a verba da propaganda possibilitaria o desenvolvimento de suas pesquisas experimentais. Ele até prometeu lançar um novo CD, A Tribuna do Feicebuque, discutindo o tema que teve grande repercussão na rede social. As críticas dos fãs prenunciavam o humor que tomou as ruas em junho, questionando os gastos com a Copa, entre outras expressões de descontentamento com a mercantilização desenfreada.
As jornadas de junho deram ao eterno tropicalista a oportunidade para se redimir, ao compor e gravar uma canção dedicada aos manifestantes. Diz uma parte da letra: “A minha dor está na rua, ainda crua/ em ato um tanto beato, mas/ calar a boca nunca mais/ O povo novo quer muito mais/ do que desfile pela paz,/ mais! Quer muito mais!”. No geral, a canção celebra as manifestações, porém contém ambiguidades que revelam viés crítico, por exemplo, quando fala em “ato um tanto beato”, também no trecho em que adverte para possíveis apropriações conservadoras dos protestos: “Olha menina que a direita já se azeita/ querendo entrar na receita”. A canção está disponível no site do autor e outros como http://bit.ly/1lTEsTQ.
Esse caso é interessante para pensar o imbricamento entre arte e indústria cultural que caracteriza o processo de massificação e democratização da cultura brasileira ao menos desde os anos 1960, conforme desenvolvi em capítulo para o volume final da História do Brasil Nação. Na resposta de Tom Zé aos fãs no Facebook, ele revelou que se sentiu confortável com o patrocínio da Natura para seu disco de 2012, Tropicália Lixo Lógico, e que não foi criticado por isso. O que faz indagar se sua aura de autor avesso ao mercado não se deveu em parte a contingências da carreira. Não é raro que um mesmo artista dê mostras ora de adesão e ora de crítica ao mercado cultural, dependendo do momento. Uma possibilidade para compreender a incoerência aparente pode ser encontrada na inserção do artista no mercado cultural e nas lutas internas de seu campo profissional, procurando situar-se em relação às pressões e expectativas desencontradas dos pares, dos financiadores e do público, num quadro de modernização acelerada da sociedade, propício à geração de ambiguidades para aqueles que pretendem fazer uma arte que não se reduza a mera mercadoria cultural.
O próprio Tom Zé e outros criticaram ao longo do tempo o que pareciam ser concessões comerciais excessivas por parte de alguns fundadores do tropicalismo, como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Foi o caso de Belchior, que nos anos 1970 se apresentava como “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”, supondo que ser pobre era um trunfo para legitimar-se. Criticava alguns de seus ídolos tropicalistas que se teriam vendido, como atestava a letra de Como nossos pais: “Hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude/ está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal/ [...] Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém”. “Eles” eram os tropicalistas que supostamente haviam sido revolucionários e depois aderido à cultura do dinheiro. Caetano Veloso gravou em 1979 Beleza pura, como resposta: “Não me amarra dinheiro não!/ Mas formosura/ Dinheiro não!/ A pele escura/ Dinheiro não!/ A carne dura/ Dinheiro não!”
Em suma, no meio artístico é intrincada a relação com o dinheiro e o mercado, ora vistos como necessários ora como desvirtuamento da arte. Mesmo as propostas experimentais como a de Tom Zé não escapam da lógica inevitável da indústria cultural em nossos dias, como atestam a inserção do autor no mercado internacional pelas mãos do roqueiro David Byrne e o conturbado caso do comercial para a Copa do Mundo.
*Artigo publicado originalmente no Portal de Historia da Fundación Mapfre