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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Um leitor lê a leitura 

Affonso Romano de Sant'Anna

Affonso Romano: "Para cada bala perdida, uma biblioteca implantada"

Renato Lessa, que dirige a Biblioteca Nacional, me pediu uma frase para colocar num dos tapumes que cercam a instituição enquanto ela é restaurada. Ocorrem-me várias. Mandei-lhe essa:  Ler é apropriar-se do mundo.
Mas outras são possiveis. E releio o que tenho escrito aqui e ali.
Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não. Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente.
Não é só quem lê um livro, que lê. Um  paisagista lê a vida de maneira florida. Fazer um jardim é reler o mundo, reordenar o texto natural.
Tudo é narração. Até o quadro “Branco sobre Branco”de Malevitch conta uma estória.
A gente vive falando mal do analfabeto. Mas o analfabeto também lê o mundo. Às vezes, sabiamente.
Ler é uma forma de escrever com a mão alheia.
Insistir na leitura (apenas) como um prazer é prometer um parque de diversões onde o leitor encontrará às vezes uma usina de trabalho.
Leitura é uma  tecnologia.
Você já leu todos esses livros?  Essa é a pergunta que faz tanto o operário quanto o jornalista que vem à minha casa. A resposta pode ser variada: 
- Li esses e muitos que não estão aqui.
- Há livros que são para consulta eventual, outros que aguardam sua hora, outros que não lerei, alguns que nem lembro se li.
- Há outros que comprei de novo, pois não me lembrava de tê-los.
É interessante a observação que encontro no livro de Caillé e Rey, de que “de uma certa maneira Sherazade inaugurou a ideia do tratamento da loucura através dos contos”.
O combate ao crime e à degradação moral pode ser encaminhado através do livro. Para cada bala perdida, uma biblioteca implantada.
Nossa cultura conheceu a passagem do “regime de escassez” ao “regime de abundância” ou, talvez, de excesso de informação. Diz-se que ao tempo de Gutemberg havia em toda Europa cerca de 9 mil letrados.

Carecemos de uma história alheia para esticar a nossa.
Amar no amor alheio.
Amar com o amor alheio.
Amar pela  fala alheia.
A realidade não pode viver sem a ficção.

Estive com Mr.Cullman várias vezes. Ele e sua mulher Dorothy são benfeitores da New York Public Library. Discretamente, uma assessora da NYPL me revela que Cullman já deve ter dado US$ 20 milhões para aquela instituicão.
Literatura é um elemento mediador e o “eu” do escritor é um “eu” de utilidade pública. A literatura faz acontecer.
Além do analfabetismo convencional há o analfabetismo tecnológico, que faz com que estejamos reaprendendo diariamente novas linguagens.
Paixão de ler. Ler a paixão.
Como ler a paixão se a paixão é que nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes sofrem um desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia.

*Artigo publicado originalmente no Correio Braziliense em 13 de abril de 2014