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sexta-feira, 19 de junho de 2015

A esfinge que fala inglês e masca chiclete

Por Reginaldo C. Moraes*

15% a 20% dos jovens dos EUA são educados em um bom ensino médio 
Para nós, brasileiros, é muito útil o estudo do sistema norte-americano de educação e de inovação científico-tecnológica – de suas políticas de conhecimento, em suma. Por vários motivos. Ajuda a entender como aquele jovem país, tão grande e quase tão jovem quanto o nosso, conseguiu se transformar numa potência econômica e tecnológica. Conhecer suas políticas, seus problemas e seus resultados permite especular sobre as nossas próprias dificuldades e possibilidades. Assim, temos algumas pistas para entender o quanto uma boa política de educação nos ajuda a construir um país melhor. E, pelo conhecimento dos resultados não desejados do modelo americano, pela persistência e dramaticidade dos problemas que conflagram a sociedade americana, podemos também dimensionar o quanto isso NÃO pode ser resolvido apenas pela educação. O que também é muito importante para separar o sonho do delírio.

Maquiavel dizia que os homens seguem, quase sempre, estradas já trilhadas. Seguir as trilhas não é fazer o mesmo caminho – é aprender com a experiência de quem passou por elas. Saber aonde vão as bifurcações. Cada caminho é um caminho. Cada caminhar tem suas escolhas. Só definimos qual é o melhor caminho quando respondemos a outra pergunta: onde os caminhos vão dar e qual desses lugares queremos atingir? Estudar as trilhas alheias aumenta a nossa capacidade de previsão -  e de escolha. Por isso é preciso olhar para elas com atenção, com o cuidado de quem quer apreender mas não quer ser enganado pelos falsos indícios.

O observador estrangeiro, diante do monumental sistema de ensino superior americano e de suas principais catedrais acadêmicas, é talvez tentado a desconhecer o mundo que flui debaixo delas. A começar pelo próprio sistema educativo, pelos seus andares inferiores.

Contrastes e confrontos no coração do império

Em 1991, Robert Reich, que viria a ser secretário do Trabalho de Clinton (primeiro mandato), lamentava que 17% dos norte-americanos de 17 anos eram funcionalmente analfabetos, o que, a seu ver, era resultado de um sistema de educação não apenas frágil, mas excessivamente polarizado: apenas pequena parte das crianças americanas – 15% ou 20% – estava sendo preparada para trabalhos mais sofisticados ou exigentes, dependentes de manuseio de conhecimento sistemático, aquilo que chamava de “trabalho simbólico analítico” (REICH, 1994, p. 212).

Vale a pena ler a descrição que ele faz desse extrato alto da juventude norte-americana, até porque não se trata de um traço exclusivo daquela sociedade. Reich lembra que esses jovens frequentam escolas de elite, desde o beabá até a pós-graduação. Desde logo e desde a casa em que moram, aquilo que os cerca é cuidado e atenção. São cercados por objetos culturais enriquecedores – laboratórios, livros, filmes, computadores, viagens e experiências de vida variadas. Tudo empurra “para cima”.

Temos, portanto, entre 15% e 20% das crianças e jovens educados em um bom ensino médio (em geral, privado) e frequentando ambientes intelectualmente ricos e instigantes, com acesso a recursos que lhes permitem seguir sendo a “nata” da sociedade.

Mas a sociedade tem outro lado. E nele estão os 80% ou 85% que saem das high-schools menos “ricas” e, em sua maioria, ingressam em cursos de dois anos em community colleges, para, de fato, reciclarem seu ensino médio deficiente e, assim, aparelharem-se para a vida moderna. Alguns contrastes são chocantes. Mesmo quando você compara escolas públicas. Uma coisa é estudar numa escola pública, por exemplo, na rua 60 em New York, ao lado do Central Park. A renda liquida média das famílias supera os 140 mil dólares anuais e, como o financiamento das escolas é bastante descentralizado e reflete o distrito, é claro que a escola é limpa, bem montada e bem mantida. Daí você pega a linha verde do metrô e em quinze minutos, algumas estações adiante, você desembarca no Harlem ou no South Bronx, renda dez vezes menor. Quando atravessei um portão de uma dessas escolas, no Bronx, o contraste foi assombroso, desde a aparência interna das instalações. Depois me contaram que no inverno, com frequência, as aulas tinham que ser suspensas, por deficiência na calefação. E que as crianças não tinham livros didáticos suficientes – o mesmo livro tinha que ser compartilhado por dois alunos. Eu estava no coração do império, na cidade que mais gasta e desperdiça, que provavelmente consome mais energia do que toda a África junta. E, nela, um pedaço da “outra América” era abafada nesses recantos cinzentos.

Ali perto, nesse mesmo distrito, florescia uma escola superior – um community college – voltada sobretudo para esse extrato social. A maioria de seus estudantes vem de famílias latinas, negras ou de “brancos pobres” da América. Um notável empreendimento que se espalhou pelos Estados Unidos e mostra a ambiguidade de suas políticas – sua sede de incluir e, ao mesmo tempo, sua capacidade de segregar. Em certa medida, porque as correntes de força que circulam do lado de fora são bem mais significativas e determinantes do que aquelas que fluem pelos corredores do valente college.

Uma parte, talvez um terço, desses estudantes dos “two-year” colleges consegue entrar nos programas de transfer, isto é, de passagem para escolas superiores mais aprofundadas, as de quatro anos. O sistema americano mostra esse dinamismo e essa capacidade de capturar talentos e ao mesmo tempo, filtrar as oportunidades. Muitos serão chamados, não necessariamente escolhidos.

América: admirada e temida, imitada e repelida

Combinadas todas essas dimensões – contraditórias, por vezes chocantemente contraditórias – a sociedade americana conseguiu transmitir ao mundo uma imagem que é admirada, até mesmo invejada, e simultaneamente temida e repelida.

Terra das oportunidades. Esse é o lado da sedução. E, nesse lado, o papel da educação é relevante: o mérito associado à ascensão acadêmica é com frequência apresentado como suporte da ascensão social. Por outro lado, é sugerido como fator legitimador da terrível desigualdade social que o modelo americano exibe. Como se os ricos fossem ricos porque são educados e inteligentes. Como se não fossem  educados e inteligentes precisamente porque são ricos. Entender esse mundo nos ajudaria, quem sabe, a perceber melhor o nosso. Como poderíamos ter algo desse dinamismo e dessa criatividade, evitando cair, ao mesmo tempo, nos seus efeitos indesejados e nas ilusões que propaga para escondê-los?

Certa vez, um jornalista americano, afetivamente apegado ao Japão em que viveu por bom tempo, escreveu algo assim: "Os 10% ou 20% mais bem preparados, no ensino médio da América, são mais preparados para a vida do que seus equivalentes em qualquer outro lugar. [Fallows, 1995, p. 442]. Ao mesmo tempo, era impelido a comparar essa realidade com a do mundo asiático:

A mais forte insuficiência do sistema americano é a área de maior sucesso do sistema asiático: garantir que os menos-preparados sejam pessoas competentes. As raízes da polarização do sistema escolar americano — tão bom na parte superior, tão ruim na parte inferior — obviamente envolvem fatores que vão além das escolas. Mas, como em geral a educação desempenha um papel tão crucial nas perspectivas econômicas do país, assim como em grande parte determina quais tipos de americanos podem obter quais empregos, no curto prazo vale a pena concentrarmo-nos nas próprias escolas. No curto prazo, o maior problema educacional da América é que suas piores escolas e piores alunos são tão ruins; Enquanto isso for verdade, a polarização social só irá piorar.

Se não fosse por outro motivo, se não fosse relevante conhecer as formidáveis conquistas da educação e da ciência nos Estados Unidos, essa percepção já seria suficiente para justificar seu estudo. Essas foram algumas das razões que me fizeram escrever, para a Editora Unesp, esses dois livros: O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento (2013) e Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura (2015).

*Reginaldo C. Moraes é doutor em Filosofia pela USP e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Unicamp. Além das obras citadas, publicou, também pela Editora Unesp, As cidades cercam os campos (2008, em coautoria com Maitá de Paula e Silva e Carlos Henrique Goulart Árabe) e Estado, desenvolvimento e globalização (2006).