Artigo

Unil
Unil
quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

A retórica do fim do latifúndio no levante do Brasil arcaico

De acordo com o IBGE (2012), mais de 2,7 milhões agricultores têm a seu dispor área média inferior a 2,9 hectares. A soma de tudo o que ocupam nada menos que 1,6 milhão deles é idêntica à fração territorial de uma única fazenda, a Curuá.


O rechaço ao latifúndio não é novidade em nenhuma sociedade que se pretende avançada, até porque todos os países que alcançaram o desenvolvimento só o fizeram em vista da capacidade de construir pactos e alianças internas que culminaram na sua eliminação, seja por meio de reformas agrárias clássicas, seja por meio da instituição de mecanismos tributários ou ônus econômicos que os tornaram inviáveis.

No Brasil real, de impressionantes números do agrícola, mas também do agrário, o volume das safras agrícolas tem sido sistematicamente evocado para blindar a grande propriedade, tudo devidamente articulado ao silêncio sobre os ônus civilizacionais dessa escolha. Tais representações sociais não seriam possíveis caso não estivéssemos diante da persistência do latifúndio.

Embora extirpado por força da retórica renovada que orienta a política do Estado brasileiro, para não mencionar o discurso acadêmico que se pretende moderno, os domínios senhoriais vêm se perpetuando graças ao pacto antidemocrático que ainda não conseguimos derrotar, malgrado nossa democracia representativa e nossa Carta Magna cidadã. Se no passado a vontade da casa grande se manifestava no poder de acumular e de dispor de vidas humanas ao seu arbítrio, na atualidade se revela na investida monopolizante e dilapidadora do mais primordial e precioso bem comum: a terra que, de quebra, comporta os elementos indissociáveis à vida: água, ar, fauna e flora.

Nada que pudesse dispensar o respaldo da lei miúda, aquela que afronta a Constituição mas parece não fazê-lo e, mesmo quando o faz explicitamente, se impõe pela força de arranjos jurídicos avessos à justiça social. Embora siga vigente o artigo 225 da Constituição, segundo o qual todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, em 2012 tratou o poder público de renunciar explicitamente à tarefa de defendê-lo e preservá-lo. Bastou sancionar a Lei 12.651, para muitos o Código do Desmatamento, agora em vigor graças ao Cadastro Ambiental Rural que, na prática, passa a borracha nos crimes ambientais pretéritos e amplia as possibilidades de devastação futura.

Seria legítima a pauta dos ruralistas, ao clamarem por uma legislação ambiental mais branda, como forma de prover comida ao povo brasileiro? Que o digam milhões de citadinos hoje afetados por uma inédita falta de água, que doravante tenderá a ser cada vez menos episódica.

Inútil blasfemar contra São Pedro pela falta de chuva, porque há leis meteorológicas infalíveis, a do regime pluviométrico sujeito aos ciclos da natureza é uma delas. O manejo parcimonioso do solo, a intocabilidade da mata ciliar e a conservação das Reservas Legais é peça importante nisso, porque sem infiltração suficiente para a recomposição dos lençóis freáticos, não haverá excedente hídrico suficiente para a manutenção das nascentes e rios. Isso não poupará a cidade.

Tudo em nome da viabilidade econômica dos chamados agricultores familiares que, em sendo pobres, não o são por causa da necessária parcimônia ambiental mas, em regra, por causa das nesgas de terra que possuem. De acordo com o IBGE (2012), mais de 2,7 milhões agricultores têm a seu dispor área média inferior a 2,9 hectares. A soma de tudo o que ocupam nada menos que 1,6 milhão deles é idêntica à fração territorial de uma única fazenda, a Curuá: até 2011 foi ostentada como propriedade privada graças a artimanhas fraudulentas perpetradas por Cecílio Rego de Almeida, fundador de uma das maiores construtoras do país. Embora a justiça tenha determinado o cancelamento da matrícula desse imóvel em 2011 após uma batalha jurídica de mais de 15 anos, ainda há margem para recurso contra a sentença.

Parece indubitável que nesse país de dimensões continentais a existência de tantos minifúndios seja a outra face dos latifúndios, a maior parte constituída graças à grilagem de terras públicas e falsificação de documentos, raramente contestados e nunca retornados ao patrimônio público sem a paga do que se convencionou chamar de benfeitorias, via desapropriação, esse instrumento constitucional posto de lado nos últimos anos, já que os poucos assentamentos de reforma agrária foram feitos mediante a compra de terras pelo governo.

Consta no registro do Sistema Nacional de Cadastro Rural (INCRA, 2011) um único imóvel com área de 6.250.021 hectares, fração próxima ao que dispunham 2,2 milhões de estabelecimentos rurais identificados pelo IBGE no último censo agropecuário. Importante destacar que esse imóvel está enquadrado na categoria de situação jurídica não informada, o que pode significar qualquer coisa, exceto propriedade legal.

Em qualquer país democrático e de direito, não haveria óbices para em eventuais situações dessa natureza, um único ato legal e sem qualquer ônus para os cofres públicos, retomá-lo, como forma de destinar tal patrimônio público a quem de direito, os agricultores em situação de vulnerabilidade fundiária. Entretanto, isso está longe de acontecer por aqui, a julgar pela declaração inaugural da autoridade máxima do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento pelos próximos quatro anos, Kátia Abreu, que laconicamente decretou o fim do latifúndio no Brasil.

Com a palavra, nós cidadãos, porque no repúdio político ao autoritarismo desde a fala há margem para o enfrentamento dessa violência não menos cerceadora da dignidade e do devir quanto a dos tempos da senzala. 

Referências

BRASIL. Lei 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Brasília, Diário Oficial da União, 26 maio 2012.

INCRA. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Sistema Nacional de Cadastro Rural: primeira apuração de 2011. MDA/INCRA: 2011.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006: segunda apuração - Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: 
< http://sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: 24 fev. 2014.

*Eliane Tomiasi Paulino é doutorada em Geografia pela Unesp e professora do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina. Pela Editora Unesp publicou Por uma geografia dos camponeses (2012).