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terça-feira, 28 de outubro de 2014

Livro e leitura*

Direito da cidadania para todos e estratégia de desenvolvimento

José Castilho Marques Neto

                                     Castilho: é  um direito  nos inserirmos  no mundo contemporâneo


Há desenvolvimento humano que seja sustentável sem a formação de leitores plenos no mundo contemporâneo? Formar leitores plenos e altamente capacitados, além de um direito da cidadania, deve ser parte constitutiva da necessária estratégia de construção de um país que se pretende autônomo, inovador, parceiro e não subalterno

O Brasil, que  iniciou tardiamente seu processo de industrialização no século passado, produziu, desde os anos 1930, inúmeros programas e projetos de formação de leitores e incentivos à atividade editorial. Todos tiveram alcances limitados e naufragaram como política pública com as mudanças no comando de governos. Jamais tivemos uma política de Estado, supragovernamental e suprapartidária, para formar leitores. A história da construção de leitores e da valorização da escrita no Brasil é errática e insuficiente, não contribuindo para formar, em larga escala, a necessária  autonomia intelectual de compreender, criticar e criar significados com base na palavra escrita.

Cantado em prosa e verso por suas contradições, nosso país também não deixa de contradizer-se quando o assunto é livro e leitura. É preciso distingui-los, sendo o livro necessariamente um produto cultural único, resultado de elos de uma complexa cadeia produtiva que vai do autor ao editor e deste para as redes de distribuição, formando o que denominamos a economia do livro. Já a leitura, que se “configura um ato criativo de  construção dos  sentidos, realizado pelos leitores a partir de um  texto criado por outros sujeitos” (Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL), embora não  totalmente dependente do livro, tem nesse objeto seu principal aliado, mesmo que  hoje ele adquira formas da “textualidade eletrônica”, como nos ensinou Roger Chartier.

Mas voltemos à nossa história e contradições. O alfabetismo limitado que ainda vivenciamos no Brasil contrapõe-se a uma vigorosa indústria editorial se a compararmos ao contexto  latino-americano. Embora distante das potências editoriais e conglomerados industriais do mundo do livro situados no hemisfério norte, o Brasil produziu 62.235 títulos novos em 2013, num total de 467.835.900 exemplares, faturando R$ 5,36 bilhões segundo a última pesquisa “Produção e vendas do setor editorial brasileiro”, realizada pela Fipe/CBL/ SNEL. O Brasil  lidera absoluto, com 41% dos registros do ISBN 2013 (a identidade de cada livro publicado), em pesquisa que  envolve dezenove países latino-americanos. 

A produção cada  vez mais profissionalizada não encontra ressonância, por outro lado, em sua distribuição no vasto território nacional. O país, cada vez mais, ressente-se do ínfimo número de  livrarias que se espalham desigualmente pelo território, como demonstra o diagnóstico da  Associação Nacional de Livrarias em  2012: 60% das livrarias encontram-se  na  região Sudeste. O processo de produção não encontra a necessária capilaridade na distribuição das  livrarias e distribuidoras, mas, concomitantemente, depende desse sistema para compor seu maior faturamento. Hoje,  há um desarranjo estrutural desse ecossistema, agravado pelos  novos modelos de negócio que chegam ao país.

Há também que considerar, para entender a complexidade do setor editorial e livreiro do Brasil, o crescente fortalecimento do papel do Estado nas compras para o sistema educacional e bibliotecas públicas. O governo brasileiro é, há décadas, o maior comprador individual da indústria editorial brasileira. Em 2013, foram 200.307.911 exemplares adquiridos e investimentos de R$ 1,474 bilhão.

Nesse quadro produtivo, que exibe contradições, mas exala dinamismo, o que acontece com o desenvolvimento e a formação de leitores?

É importante examinar os esforços do Estado nesse item. Além das compras governamentais, o Estado conta com planos e programas importantes que se avolumaram na última década. Por exemplo, existem 5.976 bibliotecas públicas, conforme dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas do Ministério da Cultura (MinC), e, embora com deficiências, esse é o equipamento cultural mais presente na absoluta maioria das cidades e veículo fundamental na democratização do acesso à leitura. Na área  da educação, os números que caminham para a universalização dos ensinos básico e médio são ascendentes nos últimos quinze anos, e o número de estudantes universitários é igualmente crescente. Dados censitários do IBGE demonstram que o número de brasileiros com  ensino médio ou  superior cresceu cerca de 30 milhões entre os anos 2000 e 2010.

À primeira vista, esse  quadro poderia demonstrar que o desenvolvimento da capacidade leitora no país caminha para uma superação. Não é assim! Autoridades e especialistas educacionais são os primeiros a acusar o problema: o ensino universaliza-se,  há  o  acesso crescente à  escola, mas  temos de obter ganhos de qualidade do ensino.

No imenso Brasil que  não  lê, o índice mais  crítico apontado é a persistência de 25% apenas de leitores plenos segundo dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf ):  “O percentual da população brasileira alfabetizada  funcionalmente  foi  de 61% em  2001 para 73% em  2011, mas apenas um  em  cada  quatro brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática”. Trabalhar esse dado é a chave básica, primária, para desenrolarmos o processo de formação e desenvolvimento do cidadão brasileiro. E essa tarefa não será  realizada se não modificarmos profundamente nossa visão e estratégia sobre a importância vital da leitura para a educação, para a cultura e para todos os ângulos e vértices da vida no século XXI, notoriamente o da era da informação e do conhecimento. De algum modo, temos de provocar a compreensão dessa evidência necessária, mas que ainda caminha com dificuldade e com parcos recursos nas  mãos isoladas de  poucos militantes da leitura dentro e fora dos governos.

Tão árdua quanto necessária, essa é uma tarefa que deve envolver o Estado e a sociedade, e ter educação e cultura na condução dos esforços que são interdisciplinares e incluirão gerações, planejamentos, objetivos de longo prazo e mudança no pensar e no sentir. Conquistarmos habilidades necessárias para nos inserirmos enquanto nação no mundo contemporâneo é antes de tudo um  direito, um brado pela liberdade e pela emancipação social e econômica.

A boa notícia é que temos um plano para isso. Os últimos dez anos foram marcados por grandes movimentos em prol da formação de leitores em nosso país. Mas há um destaque que abraçou todos os elos do livro e da leitura. Contando com análises e convicções ditadas pela  história da militância pela leitura no Brasil,  o PNLL foi criado por  muitas mãos da sociedade civil e do Estado, introduzido pelo MinC e pelo Ministério da Educação em dezembro de 2006, ratificado por decreto em  2011, e agora  aspira a ser uma lei federal perpetuando-se como política de  Estado. Trata-se de verdadeiro pacto social, amplamente debatido e avaliado, que se desdobra em planos estaduais e municipais de livro e leitura. Seus quatro eixos são uma senha para o futuro do livro e da leitura no Brasil: democratização do acesso à leitura; fomento à leitura e à formação de mediadores; valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico; e desenvolvimento da economia do livro. Estamos no exato momento para executá-lo totalmente e incorporá-lo à estratégia de  desenvolvimento da nação. Não devemos deixar  escapar essa oportunidade como  tantas vezes  na  história escapou Kairós, o inconstante e escorregadio filho de Cronos.

*Artigo publicado na edição de outubro do jornal Le Monde Diplomatique.