segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Marcelo Ridenti
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Exigência de fundo: mais gastos públicos para o bem-estar coletivo |
Autor de vários títulos publicados pela Editora Unesp, o professor de sociologia da Unicamp retoma as manifestações de junho e, a partir daqueles eventos, analisa o atual momento político e social do Brasil. Neste primeiro artigo, de quatro de sua autoria que o blog vai publicar sobre o tema, ele sugere que as manifestações parecem responder às mudanças culturais significativas no país nos últimos anos, promovidas pelo crescimento do ensino superior e da internet
Ao escrever, para a coleção História do Brasil Nação, o capítulo sobre a cultura no Brasil a partir da década de 1960, analisei uma série de dados estatísticos. Eles apontam claramente para a rápida modernização e urbanização da sociedade brasileira, bem como para o aumento do acesso aos bens culturais e a ampliação da escolaridade da população, apesar da persistência das desigualdades sociais e dos inúmeros problemas e insuficiências de educação.
A tendência que se consolidou foi a do crescimento simultâneo da democratização e da massificação cultural. Ou seja, houve ampliação expressiva do acesso à educação e à cultura, mas num quadro de submissão à racionalidade da sociedade produtora de mercadorias. A tendência nos últimos 50 anos foi criar condições para o desenvolvimento da indústria cultural no Brasil, em seu duplo aspecto de produção de mercadorias simbólicas diversas mas padronizadas e de lógica cultural no capitalismo tardio, pela qual todos se submetem à unidade da produção e mercantilização, que impõe seu próprio ritmo, dirigindo e disciplinando as necessidades dos consumidores.
Esse processo, em diferentes momentos, gerou respostas políticas e culturais que mobilizaram multidões, como os movimentos de 1968, capitaneados nas ruas pelos estudantes e no palco pelos artistas; as manifestações pelas eleições diretas para a presidência da república em 1984; e os protestos pelo impeachment do presidente Collor em 1992. Com o tempo, a mobilização popular nas ruas foi perdendo terreno, era difícil juntar mais de mil pessoas. A rotina da vida democrática após o final da ditadura em 1985; o sucesso do plano real de combate à inflação em 1994; a eleição do antigo líder sindical Lula à presidência em 2002, implementando políticas sociais para atenuar a fome e a miséria (mesmo sem realizar reformas socializantes); a retomada da política desenvolvimentista e a estabilidade na economia, tudo isso parecia fazer do Brasil uma ilha num cenário internacional conturbado.
Observando os dados dos anos mais recentes, era notória a aceleração de algumas mudanças culturais de peso, como o acesso crescente ao ensino superior, à internet e às redes sociais. Eis alguns números: de 2001 a 2011, o total de estudantes universitários saltou de 2.694.245 (32,6% no ensino público), para 6.739.689 (26,3% nas escolas do Estado), conforme dados do Ministério da Educação (
http://www.crasp.gov.br/crasp/WebForms/interna.aspx?campo=2940). Mesmo assim, atestando as enormes desigualdades ainda prevalecentes no Brasil, dados do Pnad/Ibge apontavam que, em 2009, cerca de 70% dos jovens entre 18 e 24 anos não frequentavam escola, muitos deles fazendo parte do “nem nem”, nem escola e nem trabalho.[Os dados do censo da educação superior de 2010 estão disponíveis em
http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2010/divulgacao_censo_2010.pdf]
Em 2005 havia 35,3 milhões de brasileiros conectados à internet; em 2012 já eram 94,2 milhões, conforme dados do Ibope, quase metade da população. Com isso, o Brasil tornou-se o quinto país do mundo em conexões.
http://tobeguarany.com/internet_no_brasil.php e
http://www.teleco.com.br/internet.asp. Essas mudanças recentes foram significativas, mas ainda não haviam dado frutos políticos e culturais claros. Pois bem, as manifestações de junho de 2013 nas ruas de todo o país parecem ser respostas a elas, envolvendo sobretudo jovens escolarizados que trabalham e usam as redes sociais para a mobilização.
Os acontecimentos
Tudo começou com uma manifestação em São Paulo no dia 6 de junho de 2013, convocada por um pequeno grupo de estudantes, mas organizado em âmbito nacional, chamado Movimento Passe Livre, que reivindica a gratuidade do transporte público urbano. O preço das passagens de ônibus, trem e metrô acabara de ser aumentado de R$ 3,00 para R$3,20 na capital paulista (naquele dia, um real equivalia a 0,46993 dólares americanos). Compareceram cerca de duas mil pessoas que atrapalharam o trânsito na avenida Paulista, uma da principais da cidade. Em 7 de junho, segundo estimativas da polícia, cinco mil pessoas manifestaram-se no mesmo local e na marginal Pinheiros, sempre seguindo convocações feitas sobretudo nas redes sociais na internet, especialmente o Facebook. O terceiro protesto ocorreu no dia 11 no centro de São Paulo, quando mais de cinco mil manifestantes foram duramente reprimidos. Os confrontos com a polícia repetiram-se em 13 de junho, mais agravados, deixando mais de cem feridos.
As manifestações passaram a mobilizar mais pessoas e a ganhar vulto nacional após a repressão policial que teve grande repercussão na mídia. Em 17 de junho ao menos 65 mil pessoas foram às ruas de São Paulo. Cerca de 50 mil no dia seguinte. Os protestos alastraram-se por todo o país, sempre convocados pela internet, ultrapassando a reivindicação inicial por transporte gratuito. Indivíduos e grupos dos mais diversos – muitos deles hostis aos partidos e sindicatos que levavam suas bandeiras para as ruas, onde estavam em minoria – faziam as mais variadas reivindicações, como baixar o preços dos transportes urbanos, melhorias na saúde e na educação, seriedade no uso das verbas públicas e o fim da corrupção dos políticos, entre outras. Protestavam por exemplo contra os gastos públicos elevados para cumprir as exigências da FIFA para realizar a Copa do Mundo de Futebol no Brasil (as manifestações inesperadamente ocorreram durante a Copa das Confederações, quando muitos países estavam com as atenções voltadas para a competição).
Apesar de variadas, todas as exigências tinham um fundo comum: mais gastos públicos para financiar o bem-estar coletivo, como transporte, saúde e educação, ao invés de serem carreados para o financiamento de interesses privados, como aqueles destinados à Copa do Mundo de futebol de 2014 e Olimpíadas de 2016, que ocorrerão no Brasil, como se sabe. Além da aplicação do fundo público, estava em jogo sua gestão, com a exigência de transparência e honestidade dos governantes.
Majoritariamente pacíficos, os atos passaram a contar com a violência de pequenos grupos a partir de 18 de junho, quando o prédio da Prefeitura de São Paulo foi depredado e lojas saqueadas. Começou a generalizar-se o padrão de manifestações pacíficas gigantescas que se tornavam violentas em seu final, já com pouca gente, quando ocorriam enfrentamentos, depredações e saques, promovidos por minorias com as mais diversas motivações, de anarquistas até ladrões comuns, passando por vândalos que faziam lembrar os antigos fascistas.
No dia 19 de junho, a Prefeitura de São Paulo (gerida pelo Partido dos Trabalhadores – PT), e o governo do estado (do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB), recuaram do aumento nas tarifas de transporte urbano. O mesmo ocorreu em outras capitais e estados. A vitória pontual não bastou para acalmar os ânimos. Em 20 de junho houve manifestações em cerca de 400 cidades brasileiras, até mesmo algumas de pequeno e médio porte. O jornal Folha de S.Paulo calculou que ao menos um milhão de pessoas protestaram nesse dia. O Rio de Janeiro passou a ser o cenário onde mais gente foi às ruas, afrontando sobretudo o governador Sergio Cabral, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Os três principais partidos viam sua administrações contestadas pelas manifestações.
http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/21/2
Diante do quadro, o Congresso Nacional tratou de mostrar serviço, agilizando votações. Por sua vez, a presidente Dilma Roussef (PT) falou em rede nacional de televisão em 24 de junho, reconhecendo a legitimidade do movimento e prometendo uma série de medidas a serem negociadas com o congresso, centradas sobretudo na proposta de reforma política que envolveria o financiamento público das campanhas eleitorais. Embora os protestos não fossem exclusivamente dirigidos a ela, mas contra os políticos em geral, em menos de um mês sua popularidade caiu pela metade. Na primeira semana de junho, 57% dos brasileiros consideravam sua gestão boa ou ótima. Após a onda de manifestações, esse número caiu para apenas 30% no fim do mês.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/116414-popularidade-de-dilma-cai-27-pontos-apos-protestos.shtml
Segundo pesquisa do DataFolha em todo o país, concluída em 29 de junho, 81% da população apoiou as manifestações e só 15% declararam-se contrários aos protestos. 65% consideraram que os eventos trouxeram mais lucros do que prejuízos ao país, já 26% disseram que houve mais prejuízos. Isso atesta que as manifestações – que tiveram participação sobretudo de jovens escolarizados – foram representativas de um amplo descontentamento popular.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/116497-8-em-cada-10-brasileiros-apoiam-protestos.shtml
Em 11 de julho os sindicatos realizaram uma greve geral, que entretanto não contou com a adesão esperada. O movimento tendeu a refluir naquele mês, perdeu seu caráter de massas. Ficou mais restrito a uma série de pequenas manifestações, fosse pelo desgaste natural de mobilizações tão longas, pelas respostas governamentais ou pelo início das férias escolares, pois havia muitos estudantes envolvidos. Mas as expectativas de novos desdobramentos dos movimentos seguiriam em todo o país.
Quem eram, afinal, aqueles que foram à ruas? Como pensar o sentido histórico e sociológico das manifestações? Eis um tema para o próximo texto neste blog.
*Artigo publicado originalmente no Portal de Historia da Fundación MapfreMarcelo Ridenti é graduado em Ciências Sociais e em Direito pela USP e doutor em Sociologia pela mesma instituição. É Professor titular de Sociologia na Unicamp. Pela Editora Unesp publicou
Brasilidade revolucionária (2010) e
O Fantasma da revolução brasileira (2010).