Democracia em crise*

Unil
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quinta-feira, 20 de março de 2014

Neste artigo, o cientista político Luis Felipe Miguel, autor de Democracia e representação (Editora Unesp, 2014), perpassa as principais correntes de pensamento para analisar o tema “crise de representação política”. Para ele, os mecanismos que pretendem dar alguma densidade democrática à representação funcionam mal e o modelo termina comprometido por dificuldades conhecidas, como o controle da informação, o baixo estímulo à qualificação política dos cidadãos e a vulnerabilidade das instituições à pressão dos interesses privilegiados: “Parece mais promissor apostar em mecanismos que aprofundem a capacidade de controle dos representados sobre seus representantes, em vez de abandoná-los”. 

Luis Felipe Miguel
























Meu ponto de partida aqui é o que chamo de “crise da representação política”. Autores como Bernard Manin negam essa expressão, preferindo falar num processo de “reconfiguração” dos mecanismos representativos. Mas, se evitamos uma perspectiva teleológica, que presume que esta “reconfiguração” tem um destino certo, creio que estamos mais bem servidos se entendemos que há um momento de crise, que deve resultar em um novo ou em novos modelos de representação, mas com esse resultado ainda em aberto. Essa crise se vincula, sobretudo, ao sentimento de que não estamos representados nas esferas decisórias. O cidadão comum não se reconhece naqueles que tomam decisões em seu nome. Os mecanismos de representação política aparecem como pouco representativos dos cidadãos.

Entre os motivos citados para a situação, estão a complexidade crescente dos pertencimentos coletivos (segundo Laclau), a redução ou mesmo desparecimento das clivagens sociais (segundo Touraine) ou “individualização” das diferenças (segundo Rosanvallon). As três perspectivas convergem para o desvanecimento da política de classes que marcou a política da representação contemporânea. São motivos dignos de consideração, mas julgo necessário acrescentar outro, mais comezinho: o senso de realidade. As instituições políticas são, realmente, muito pouco permeáveis à influência dos cidadãos comuns. Os mecanismos de cooptação são atuantes, os grupos poderosos têm enorme capacidade de fazer seus interesses serem ouvidos em detrimento dos outros e a elite política tende a se distanciar da massa.

Temos, assim, desafios crescentes ao modelo clássico, “pitkiniano”, de representação política, centrado na transferência eleitoral. Por ele, a representação teria duas facetas, a autorização e a accountability, e ambas se cristalizariam na eleição, quando o titular nominal da soberania, o povo, autoriza aqueles que tomaram decisões por ele e, no mesmo gesto, apresenta seu veredito sobre o desempenho de quem governou até então. As dificuldades para que o modelo funcione como deveria, porém, são muitas: controle da informação, baixo estímulo à qualificação política dos cidadãos, vulnerabilidade das instituições à pressão dos interesses privilegiados. E também a multifuncionalidade da representação: embora os representantes exerçam seu poder sobre uma miríade de questões, os representados têm que apresentar um veredito único por meio do voto.

A partir do final dos anos 1970, teorias alternativas da representação política tentam responder a tais desafios, apresentando versões normativas da “boa” representação que superariam ou, em boa parte dos casos, passariam ao largo desses problemas. No entanto (e esse é meu ponto aqui), elas deixam de lado elementos importantes que as visões clássicas liberais da representação indicam, e que é fundamental que sejam retidas.

Nos anos 1980, sobretudo dentro da teoria feminista, mas não só, há uma revalorização da representação descritiva, que Pitkin desdenhava como ingênua. É a “política de presença”, de Anne Phillips, que depois ganha sua formulação teórica mais desenvolvida com Iris Young e sua conhecida ideia de que a representação engloba opiniões, interesses e perspectivas. As perspectivas são a visão do mundo que temos por causa de nossa posição na sociedade e, portanto, só são representáveis por um igual. Logo, os grupos subalternos precisam estar diretamente presentes nos espaços decisórios: caso contrário, suas perspectivas não serão levadas em conta. O objetivo é louvável e o conceito de perspectiva social de Young tem se mostrado útil em muitas circunstâncias. Mas a aposta na política de presença é problemática, por dois motivos principais:

(a) Falta de foco na relação entre representantes e representados, crucial para garantir a supervisão dos últimos sobre os primeiros. Os problemas que Pitkin apontava na representação descritiva são problemas, de fato. Decorre daí uma ausência de preocupação com os mecanismos de cooptação e uniformização próprios da operação do campo político, que, no entanto, são importantíssimos para a redução do espaço da dissensão. A esperança de redução da cooptação reside na relação entre a base de representados e a capacidade dessa base extrair compromissos e forçar comportamento, não na mera similaridade de posição social. Até porque essa similaridade é tensionada de partida com a inclusão do representante nos círculos de poder, como já dizia, há mais de um século, Robert Michels.

(b) O outro motivo é que a ênfase nas perspectivas ignora que as disputas políticas dizem respeito a interesses. Creio que a Young de Inclusion and democracy é vítima de seu namoro com as teorias deliberativas, que atinge o zênite naquele livro. As perspectivas sociais se encaixam, assim, numa leitura epistêmica da política: todas as perspectivas deveriam estar representadas para apresentar uma imagem mais completa do mundo social e, assim, ampliar a qualidade da deliberação. Mas, com isso, o conflito de interesses, que é crucial para entender as disputas políticas reais, some de cena.

Young não desenvolve a relação entre perspectivas e interesses, o que é, a meu ver, a principal lacuna de sua elaboração. Mas não vou me alongar nisso. O ponto é que, para quem pensa que os diferentes interesses presentes no mundo social devem ter como se expressar nos espaços de tomada de decisão política, a mera diversidade de perspectivas se mostra insuficiente.

A partir dos anos 1990, outra percepção normativa alternativa da representação como a se desenhar, culminando naquilo que, nos anos 2000, vai aparecer como a “representação autoinstituída”. No Brasil, são importantes contribuições como as de Leonardo Avritzer e Adrián Gurza Lavalle. Tem a ver com a multiplicidade de espaços de representação (conferências, conselhos, fóruns virtuais), que vão muito além das arenas em que delegados autorizados pelo voto agem em nome de seus constituintes. Surge a necessidade de averiguar a legitimidade de indivíduos ou grupos que falam como representantes, mas que não passaram por quaisquer instâncias de autorização, nem prestam contas a ninguém. A obra de Michael Saward é particularmente importante, ao dissociar por inteiro a representação dos representados. Ele postula o livre mercado da representação política, em que qualquer um pode dizer “eu falo em nome de tal grupo” para depois ver se colou.

Segundo ele, a representação política é algo que está permanentemente sujeito à contestação, o que é correto. Mas, ao defini-la como um processo ininterrupto de produção, recepção, aceitação e rejeição de reivindicações representativas, ele desloca o foco da relação entre os representantes (ou “representantes wannabes”, por assim dizer) e sua base para a relação interna às redes discursivas que admitem alguém como representante de um grupo ou de um interesse. Porém, estas redes são formadas pelas instituições do Estado, pelos veículos de comunicação, pelos interesses já estabelecidos. Em suma, o “se colou” não é “se colou” com a base, mas com outros agentes bem posicionados: o deslocamento implica em relegar à irrelevância política as pessoas comuns.

Essa démarche é coerente com a percepção de que a questão não é “há representação aqui”, mas “qual o impacto de evocar representação aqui”. No entanto, as duas questões possuem importância, caso a democracia permaneça no horizonte como valor que permite aferir a qualidade da relação de representação. O fato de que determinados grupos e indivíduos sejam capazes de evocar com sucesso a posição de representantes sem manter qualquer troca substantiva com as populações que dizem representar indica não a irrelevância do problema da vinculação com a base, mas os vieses das redes de atribuição de legitimidade. O fato de que Bono Vox, por exemplo, passe por representante de africanos famintos não significa que ele os represente em qualquer sentido normativamente íntegro da representação política – e tampouco significa que sua atuação não possa, eventualmente, ser considerada meritória e digna de respeito.

Numa manifestação típica do polianismo desta vertente da teoria política, Saward observa que os representantes não-eleitos (que são também os que não estão submetidos a processos de autorização e accountability) permitem escolha permanente e mais matizada, abrem espaço para a identificação não-partidária, dão voz para os afetados e mesmo maior controle, por meio das redes de governança. Em suma, nós somos condenados a ser representados por representantes eleitos; com os não-eleitos, há uma escolha mais efetiva: “Nós normalmente não temos a oportunidade de escolher representantes não-eleitos de uma maneira tão clara, mas também não estamos fadados a tê-los ou a segui-los”. Só que não estamos “fadados a segui-los” porque, neste modelo, somos dispensáveis. A rigor, o “representante” não precisa de seus representados. Mas permanece o fato de que, nas circunstâncias das sociedades contemporâneas, a presença política direta não é uma possibilidade. A escolha é entre porta-vozes que mantêm ou que não mantêm interlocução com sua base. Dito de outra forma, as características de informalidade, ausência de regulação e mesmo competição selvagem da representação não-eleitoral permitem tanto a reapropriação permanente pelo público quanto a independentização dos representantes. O foco exclusivo na efetividade e a despreocupação com os mecanismos de vinculação representante-representado fazem com que a teoria de Saward, apesar dos reclamos em contrário, aponte decididamente na direção da independência dos representantes.

Para superar estes problemas, é necessário diferenciar os conceitos de representação, democracia e legitimidade. Na clássica formulação weberiana, a legitimidade se liga às condições de estabilidade de uma determinada forma de dominação; de forma mais ampla, a ciência política a associa a um consenso socialmente difuso sobre a justeza ou, ao menos, a aceitabilidade de uma instituição ou de uma prática. Governos legítimos não são necessariamente democráticos ou representativos, como fica claro já a partir de Weber e de suas categorias da dominação tradicional e da dominação carismática. Mesmo na democracia, formas legítimas de ação não são necessariamente representativas, como é o caso da busca por reparações individuais.

Ao mesmo tempo, nem toda representação é democrática, conforme já indicava Hanna Pitkin (um monarca representa seu país, na medida em que é capaz de falar por ele, sem ter se submetido a procedimentos democráticos). E, por fim, a democracia não se esgota nos procedimentos representativos, não apenas porque seu modelo inicial prevê a participação direta de todos, nem mesmo porque uma parcela do que há de mais valioso nos regimes democráticos contemporâneos se liga aos direitos e garantias individuais. Um dos elementos centrais da nossa compreensão de democracia é a ideia de igualdade, que, na verdade, está em tensão permanente com a representação, que introduz necessariamente a desigualdade entre representantes e representados.

A crítica a Saward me permite qualificar melhor minha questão: nosso problema não é encontrar a representação política legítima, mas a representação política que, sendo legítima, maximize seu componente democrático. Para isso, a relação entre representantes e representados é crucial.

Mas essa relação não está sozinha; ela se liga às relações horizontais entre os representados. Não é possível haver representação democrática sem que os indivíduos tenham como produzir, no diálogo entre si, seus interesses coletivos. É essa a questão atacada pelas visões de esfumaçamento das clivagens sociais, de individualização das desigualdades, propugnada, a partir dos últimos anos do século 20, por autores como Alain Touraine ou Pierre Rosanvallon. Não tenho dúvida de que a visão da superação das clivagens sociais clássicas, a começar pela classe, para chegarmos a uma “sociedade de indivíduos”, é uma ilusão de ótica provocada por uma paisagem social em rápida mutação e por um discurso ideológico que afirma ininterruptamente essa pretensa transição. Afinal, as estruturas de dominação continuam atuantes, as hierarquias sociais também e, por mais que se exalte a multiplicidade, abertura e incerteza do mundo atual, os pontos de partida continuam condicionando fortemente as trajetórias possíveis.

Em visões como a sustentada por Rosanvallon, projetos de transformação social ancorados nas assimetrias estruturais perderiam validade. A desigualdade se manifesta como exclusão, mas os excluídos não formam um grupo, seja por parâmetros sociológicos, seja mesmo por parâmetros estatísticos. A exclusão é um fenômeno individual, e os excluídosa “não partilham mais do que certo perfil de ordem biográfica”, associado a “rupturas sociais ou familiares” ou a “evasões profissionais”, sem que sejam perceptíveis “diferenças estáveis”. Os excluídos não têm condição de se representar, pois, ao contrário dos pobres ou, a fortiori, dos trabalhadores, partilham uma situação, mas não seus determinantes e, logo, não possuem interesses comuns.

Trata-se, então, de uma percepção que, ao mesmo tempo em que reconhece a vigência ou mesmo a ampliação das desigualdades, nega a elas densidade sociológica e relevância política. O que sobra é a busca de visibilidade para as peculiaridades, como no projeo recém-lançado pelo próprio Rosanvallon, de um “parlamento dos invisíveis”: um site de internet em que os dramas individuais estariam narrados. Na ausência da possibilidade de construção de interesses comuns, resta apenas a aposta na sensibilização diante da situação particular. Embora recusando a responsabilização individual e também a insensibilidade ao drama humano gerado pela desigualdade, Rosanvallon, no entanto, alcança uma conclusão similar à do ultraliberalismo, a negação de que a desigualdade exija a transformação das estruturas sociais.

Concluindo esse sobrevoo por algumas das principais correntes de re-pensamento da representação política, creio que devemos voltar ao começo. Os mecanismos de autorização e de accountability funcionam mal, por muitos motivos que sabemos. Mas eles existem como reação a um problema de base: a tensão entre representação e democracia, isto é, a tensão entre a concentração da capacidade decisória em alguns e a ideia de igualdade política. Autorização e accountability buscam garantir alguma densidade democrática à representação e, embora o voto tenha sido historicamente o meio padrão de obtê-las, elas podem ser vistas como quaisquer instrumentos que fomentem o diálogo permanente e a responsabilidade diante dos interesses dos constituintes. Parece mais promissor apostar em mecanismos que aprofundem a capacidade de controle dos representados sobre seus representantes, em vez de abandoná-los.

* Conferência pronunciada no Instituto de Estudos Sociais e Político (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 12 de março de 2014