Edward Said

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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Vladimir Safatle



Ele era um dos poucos a pensar esteticamente a política
"Nessa figura do duplo Moisés, no qual o esquecimento do primeiro volta como sintoma a assombrar os vivos, Said encontrara a saga de uma identidade nacional que traz em seu bojo um corpo não idêntico, que porta as marcas indeléveis do heterogêneo"                                                                        

Há algumas semanas, completaram-se dez anos da morte de Edward Said [em 25 de setembro]. Um dos críticos literários mais originais de sua geração, Said foi um dos poucos autores das últimas décadas capazes não apenas de discutir, ao mesmo tempo e com rigor, arte e questões políticas contemporâneas. Ele era um dos poucos a pensar esteticamente a política, ou seja, compreender como a experiência estética era capaz de induzir novas sensibilidades no campo do político.

Por exemplo, seu último livro, "Estilo Tardio", fornece uma leitura original a respeito de um conceito estético desenvolvido por Theodor Adorno para descrever as últimas obras de Beethoven. Em um texto de juventude, Adorno expunha a linguagem musical das últimas sonatas e quartetos de Beethoven como uma experiência limite na qual princípios de organização e de unidade estilística até então respeitados eram radicalmente questionados.

Assim, o estilo tardio não aparecia como um gesto de maturação da linguagem em sua força de ordenação, mas como um flerte com o que poderia desagregá-la. Flerte que era a verdadeira prova de maturidade, pois só as obras realmente seguras podem trazer para dentro de si o que parece negá-las, transformando tal convivência com a heterogeneidade em potência criadora.

Porém havia mais do que reflexão sobre arte nessa discussão. Um pouco antes da publicação de seu último livro, Said proferira uma impressionante palestra sobre "Moisés e o Monoteísmo", texto no qual Freud elabora uma teoria a respeito da filiação e da fundação da nacionalidade. Intitulada "Freud e os não europeus", ela explora o sentido político da ideia do psicanalista a respeito de Moisés.

Said centra-se no fato de não haver para Freud apenas um Moisés, mas dois. O primeiro seria egípcio, assassinado pelo próprio povo judeu em momento de desespero e cujo lugar seria posteriormente ocupado por outro Moisés, um midianita. Nessa figura do duplo Moisés, no qual o esquecimento do primeiro volta como sintoma a assombrar os vivos, Said encontrara a saga de uma identidade nacional que traz em seu bojo um corpo não idêntico, que porta as marcas indeléveis do heterogêneo. Como se, na origem, houvesse sempre algo a desestabilizar a ordem que apela à identidade originária.

Assim, o texto de Sigmund Freud aparece como o fundamento de uma política pós-identitária, ou como a versão política da ordem do estilo tardio. Política que muitos veem como atualmente impossível. Talvez porque eles nunca deixaram que sua sensibilidade fosse transformada pela nossa experiência estética mais corajosa.                                                                                                                                                      
*Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 15 de outubro de 2013.

Confira também: A Questão da Palestina - Edward W. Said (2012) e A pena e a espada - diálogos de David Barsamian com Edward W. Said (2013)