terça-feira, 11 de agosto de 2015
Hans Ulrich Gumbrecht
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Gumbrecht: não se deve subestimar o papel da “cordialidade” brasileira |
Se atentassem para a nova forma de constituição do tempo, as sociedades contemporâneas teriam mais elementos para refletir sobre o presente e pensar o futuro. Vista sob o novo cronótopo, de "presente amplo", que segundo Hans Ulrich Gumbrecht está emergindo desde meados do século 20, a política tradicional, por exemplo, teria de se reinventar, pois já não pode contar com a possibilidade de "moldar" o futuro, contida no antigo cronótopo da "visão de mundo histórica", produto do Iluminismo. No Brasil, por trágica ironia, um governo (o de Lula) só abraçou o “futuro aberto” de modo decidido e com sucesso quando este já estava sendo substituído pelo novo cronótopo, de "presente amplo", que abarca um futuro percebido como ameaçador – e a crise política atual teria profunda relação com esse fato. Já a dificuldade do país para acertar as contas com os criminosos da ditadura civil-militar remete à "cordialidade", que, para Gumbrecht, não deve ser subestimada na história social brasileira. Neste caso, a "cordialidade" estaria impedindo que essa “zona de latência”, conceito que o pensador desenvolve em Depois de 1945, se transforme em debate público. A partir desses temas, Gumbrecht comenta, na entrevista a seguir, concedida por email à jornalista Celia Demarchi, a proposta de seu livro Nosso amplo presente, que a Editora Unesp lança na Bienal do Rio. Na cidade, ele participa de simpósio sobre crítica literária (31 de agosto, na PUC) e de colóquio sobre estética (25 de agosto, no Museu de Arte do Rio).
Muitos acreditaram durante muito tempo que o Brasil era o país do futuro, numa aparente perspectiva de “futuro aberto”. O que poderia ter motivado essa tese, de futuro eternamente adiado?
H. U. Gumbrecht: Minha resposta depende da ideia (e isto é tanto um ponto de partida quanto um tópico do meu livro Nosso amplo presente) de que um “futuro aberto” que somos capazes de moldar através de nosso comportamento e nossas ações existe como pressuposto do comportamento cotidiano desde aproximadamente 1800. Ele não existia antes (isto é, antes do Iluminismo) e tem sido parte da “construção social do tempo” que, mais pré-consciente do que de modo programático, emergiu do Iluminismo. Durante o século 19 e na primeira metade do século 20 o “futuro aberto” teve papel central no Ocidente e foi normalmente associado a uma “visão de mundo histórica”. De um ponto de vista sociológico, pode-se dizer que essa visão de mundo foi abraçada e sustentada pela ascendente burguesia (quer dizer, “burguesia” no sentido a que Marx e o marxismo se referem criticamente). Ao mesmo tempo, contudo, o “futuro aberto” foi também um pressuposto ideológico do socialismo e do comunismo em versão diferente, ou seja, na versão que pressupunha a existência de “leis históricas” e o progresso constante em direção à “sociedade sem classes”. Dada a história específica da sociedade no Brasil, parece óbvio que a “visão de mundo histórica” se tornou uma opção relativamente tardia no país. Por um longo tempo, acreditar que o Brasil um dia teria um “futuro aberto” era uma perspectiva otimista de fora do país. Somente se tornou uma realidade institucional em momentos diferentes da história brasileira do século 20. O Estado Novo teve sua versão de futuro aberto. Outra versão, e muito mais bem-sucedida, relaciona-se à visão brandamente (?) socialista que rege a política do PT desde o governo de Lula. Visto dessa perspectiva, meu livro Nosso amplo presente talvez ofereça algumas sugestões e conceitos para uma nova análise dessa história específica do Brasil.
Poderíamos dizer que o passado recente, autoritário, permanece "latente" no Brasil? Como o senhor interpreta a dificuldade do país para enfrentar esse passado e punir os crimes da ditadura, que continua ecoando no presente, por exemplo, nos métodos violentos das polícias?
H.U.G: Além da “visão de mundo histórica” e também de algum modo separadamente dela, acredito que a “cordialidade” não é algo para ser subestimado na história social brasileira. A cordialidade sugere que interações e programas inseridos no contexto institucional podem ser tratados no estilo da esfera de “problemas pessoais”. Confrontar zonas desagradáveis do passado nacional recente costuma ser visto como “falta de cordialidade” para com aqueles que tiveram responsabilidade pelo passado negativo. Em outras palavras, a “cordialidade” funciona como impedimento e meio de resistência contra a transformação da “zona de latência” em tópicos de discussão pública. Infelizmente, essa tradição acompanha os últimos – basicamente impressionantes – 50 anos da história do Brasil. Quanto à tendência à violência das forças policiais brasileiras, acho que ela faz parte de um círculo de violência social mais complexo, que constitui uma parte dessa “zona de latência”.
A crise política brasileira se relacionaria com uma perspectiva frustrada de “futuro aberto” introduzido pelo petismo?
H.U.G: O ponto principal de minha reflexão sobre diferentes “cronótopos” reside na tese de que a “visão de mundo histórica” como um cronótopo emergido do Iluminismo, tem sido contestada (e amplamente substituída). Um cronótopo diferente (o cronótopo a que eu me refiro como “nosso presente amplo”) está se impondo, desde meados do século 20. Neste novo cronótopo, de “presente amplo”, o futuro não mais se apresenta como um horizonte aberto de possibilidades para ser moldado pela ação presente, mas como um futuro cheio de ameaças percebidas como se movendo em nossa direção (por exemplo, o aquecimento global). A tragédia (ou ironia) da história brasileira – e uma forte razão da atual crise política – reside no fato de que no exato momento em que, pela primeira vez, um governo (o governo Lula) abraçou decididamente e com sucesso, o cronótopo de “futuro aberto”, esta construção social do tempo já havia sido contestada e desde então vem sendo progressivamente substituída pelo cronótopo de “presente amplo” com seu futuro congestionado. “Política” do modo como o Ocidente a conhece desde o fim do século 18 depende da existência de um futuro aberto e da crença de que ele pode ser moldado. Esta mentalidade está na verdade profundamente enraizada em todos os tipos de “política”, especialmente no socialismo e na social democracia. Eu diria, portanto, que diante da atual crise o partido do governo não pode mais continuar com o discurso de “futuro aberto”, pois na sociedade e no cotidiano do mundo agora dominado pelo “futuro congestionado” do novo cronótopo tal visão já não parece ser crível.
A impossibilidade, hoje, de haver um “futuro aberto” seria um drama da esquerda em todo o mundo? A política teria de se reinventar?
H.U.G.: Como eu disse, a dependência da “visão de mundo histórica” e seu “futuro como horizonte aberto” é uma condição da cultura ocidental em geral, e amplamente da política, mas essa visão tem sido abraçada de modo especificamente explícito pela política socialista. Em outras palavras: o problema contemporâneo é um problema geral, mas ele talvez esteja golpeando a política de esquerda de modo mais evidente. No longo prazo, acredito que, para evitar novas formas de ditadura e tirania, a “política” como prática de soberania dos povos precisa ser reinventada. Se nos velhos (e recentes) tempos políticos carismáticos tiveram amplamente a função de formular metas e visões aplicadas ao “futuro aberto”, essa nova política talvez tenha de se tornar mais reativa agora. Reativa e aberta, por exemplo, para escutar na população movimentos que, a princípio, não tenham sequer partido e discurso político. Nesse sentido, há muito para ser aprendido pela política socialista tradicional, a partir da história internacional dos chamados “movimentos verdes”. Eu não estou dizendo necessariamente que a “política verde” será a política do futuro. Mas ela tem pressionado por uma capacitação dos políticos para reagir às demandas populares que devem orientar a reforma da política tradicional, inclusive a política socialista.
De que modo o esporte influencia nossa relação com a história e a passagem do tempo?
H.U.G.: Enquanto “manter recordes” é uma prática esportiva inserida na “visão de mundo histórica”, com sua insistência em um “progresso” eterno, eu acredito que, em geral, o mundo dos esportes tem uma afinidade mais direta com o cronótopo de “presente amplo”, ao enfatizar mais a justaposição de variedades e variações do que acreditar em “progresso”. Celebrar os Jogos Olímpicos ou a Copa do Mundo de Futebol a cada quatro anos pode ser visto como um ritual ligado ao “presente amplo” – embora esses rituais, claro, não tenham sido inventados dentro do cronótopo de “presente amplo”. Além disso – mas este é um tópico diferente – a celebração e a exibição do potencial físico do ser humano implica uma perspectiva que foi reforçada no cronótopo do “presente amplo”. Ela deixa para trás uma autoimagem cartesiana que cultivou a existência humana exclusivamente na consciência e na mente – e cada vez mais reinclui o corpo humano em nossa autoimagem individual e coletiva.
Como o senhor resumiria a proposta do seu livro Nosso amplo presente
H.U.G.: Nossa conversa já foi uma resposta para esta questão – e a partir de perspectivas diversas. Os capítulos de Nosso amplo presente descrevem em tópicos diferentes o processo no qual, desde meados do século 20, a “visão de mundo histórica” tem sido confrontada e parcialmente substituída. Ao mesmo tempo, porém, ela pertence à lógica de “presente amplo” como um novo cronótopo que não vem com um programa para substituir o cronótopo anterior. A realidade cotidiana, portanto, consiste em uma tensão entre dois cronótopos diferentes. O mundo da política, por exemplo (mas também o mundo acadêmico) continua amplamente dominado pela “visão de mundo histórica”. Nosso mundo cotidiano, o mundo do lazer, o mundo da economia, em contraste, segue uma lógica diferente, não mais progressiva, a lógica de “presente amplo”. Eu não acredito que podemos mudar alguma coisa em relação a essa situação – e sequer hesito em caracterizá-la como uma espécie de destino para a humanidade neste início do terceiro milênio. Mas provavelmente nós temos chance de ter uma vida individual e coletiva melhor se compreendermos a situação. Espero que meu livro possa ser um de muitos impulsos nessa direção.