O francês Georges Minois é um caso raro de historiador que teve uma trajetória independente, sem vinculação a instituições universitárias. Isso não o impediu de ser autor de cerca de 40 livros, boa parte deles na área de estudo das mentalidades religiosas. Mas a certa altura, ele se interessou pelo outra lado da moeda: o ateísmo. O resultado foi História do Ateísmo, novo lançamento da Editora Unesp.
Por que você decidiu pesquisar o ateísmo?
Me intriga o fato de que as crenças religiosas ainda hoje sejam tão resistentes, mesmo em face às espetaculares descobertas da ciência que não deixam qualquer fundamentação racional para a existência de um deus pessoal. Então por que tantas pessoas ainda acreditam num mundo sobrenatural?
O que é o ateísmo? É simplesmente a atitude de negar a possibilidade de quaisquer elementos transcedentais?
Ateísmo, é claro, é um termo negativo, significando “sem deuses”. Ele não tem qualquer conteúdo próprio e desapareceria se não houvessem mais crenças religiosas. O ateu é uma pessoa que simplesmente vive em seu ambiente natural sem imaginar a existência de um mundo sobrenatural, do qual não há o menor sinal de existência.
O ateísmo é uma criação da tradição filosófica Ocidental?
No mundo primitivo, em que as pessoas ignoravam as causas dos fenômenos naturais e sentiam-se amedrontadas, elas consideravam, aliás naturalmente, que eles deviam ser gerados por forças sobrenaturais, invisíveis e super poderosas, e tentavam se comunicar com elas. Obviamente, foi o processo de desenvolvimento da razão, a que chamamos de filosofia, que lentamente começou a levantar dúvidas sobre estas crenças. Mas enquanto a ciência não foi capaz de apresentar explicações alternativas, a religião manteve seu domínio sobre as mentes dos homens.
O ateísmo era disseminado durante a Antiguidade e a Idade Média?
O avanço do ateísmo foi extremamente lento, pos ele dependia do progresso científico. E, tanto na Antiguidade quanto na Idade Média, ele era combatido pelos vários tipos de clero, que era a classe de pessoas que serviam a diferentes credos e usavam de sua posição para controlar a vida social.
O ateísmo chegou a ser criminalizado no Ocidente?
O clero se apresentava como o verdadeiro representante da vontade de Deus, e o único intérprete autorizado de sua “revelação”. Isso conferia aos sacerdotes um poder absoluto sobre a sociedade. O clero, numa sociedade tradicional, sempre está intimamente relacionado ao poder político, pois ambos tem o interesse comum de governar a população e mantê-la submissa. Uma vez que o estado e a igreja são tão próximos, qualquer desafio à igreja é considerado como um crime contra o estado, e conseqüentemente severamente penalizado.
É possível traçar uma história do ateísmo da mesma forma como é possível narra a história das religiões no Ocidente, por exemplo?
A história do ateísmo está muito associada ao desenvolvimento da ciência e da filosofia. A primeira onda verdadeira de ateísmo aconteceu durante a Renascença no século 16, e foi causada pela corrente cultural conhecida como humanismo, que refletia um desejo de parte das elites de livrar-se do austero código de conduta imposto pela igreja em nome do seu Deus. A seguir, na época do Iluminismo (século 18) os filósofos franceses, argumentando com base nas descobertas científicas, desafiaram abertamente as diversas crenças. Mas o ataque em massa contra as crenças religiosas veio mesmo no século 19.
Muito analistas da cultura afirmam que Marx, Nietzsche e Darwin são os principais referenciais para o surgimento de nossa visão de mundo desencantada, sugerindo que ela foi essencialmente um produto do século 19. Você concorda com esta análise?
Sim. Estes três homens personificam os três pilares essenciais do ateísmo: a ciência, com Darwin, que atingiu o cerne do mito da criação do homem; a política, com Marx, que denunciou a religião como “o ópio do povo” que o mantinha submisso em nome de um Deus imaginário; e a filosofia, com Nietzsche, que proclamou, talvez um pouco apressadamente, que “Deus está morto”.
Qual foi o insight sobre a nossa sociedade que o estudo da história do ateísmo lhe proporcionou?
Entre outras coisas, o estudo da história do ateísmo mostra como os diferentes campos de uma mesma cultura são misturados e interdependentes. É impossível separar os componentes daquilo que chamamos de uma civilização, ela é uma combinação de imaginação, razão, ciência e paixões, tudo em um equilíbrio que é sempre precário. A civilização ocidental, que supostamente dá preferência a razão, teve, constantemente, que transigir com os demais elementos da mentalidade humana, para o bem ou para o mal.
No início do século 20 muitas pessoas acreditavam que o fim das religiões estava próximo. Hoje porém vemos vários conflitos que envolvem diferenças religiosas. Será que o mundo hoje é menos ateu do que foi há um século?
Como já disse, me intriga o fato de que neste início de século 21 a maior parte da população do planeta sustente crenças religiosas em seres sobrenaturais para os quais não há nenhuma evidência científica e que são puras criações da imaginação. Mas se as religiões ainda são tão disseminadas, isto se deve à distinção enganosa entre crentes “moderados” e “extremistas”, sendo que os últimos se multiplicam graças à boa reputação dos primeiros. Todas as escrituras sagradas, que supostamente são revelações divinas e que formam a base das três principais religiões, são suscetíveis a inúmeras interpretações e, consequentemente, pode justificar todo tipo de atitude. Não será possível erradicar as crenças radiais enquanto as crenças moderadas forem consideradas dignas de respeito. Mas parece que o mundo ocidental já está pronto para se livrar destas crenças.