quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
Em Costas Negras, Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa de 1993, de Manolo Florentino, é uma das obras que mais contribuíram para a significativa revisão pela qual passou o tema tráfico de escravos a partir dos anos 1980. Ao trazer à luz dados e formulações negligenciados ainda hoje por clássicos da historiografia brasileira, o autor desvenda a estrutura política, social e econômica que, tanto no Brasil quanto na África, possibilitou ao país tornar-se o maior importador de escravos das Américas entre os séculos 16 e 19, período em que recebeu cerca de 10 milhões de negros. Confira a seguir trecho da obra que já está chegando às livrarias.
A violência que funda e seu duplo papel*
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Florentino: o Estado foi único a produzir cativos em escala |
A demanda americana por escravos, em particular a brasileira, detonou ou, dependendo da região considerada, simplesmente incentivou o desenvolvimento da produção e circulação inicial dos cativos na África. Ali, sua realização incorporava diversos tipos de elementos interdependentes (econômicos, sociais, políticos e militares), constituindo um contexto de interações sem o qual a demanda americana jamais poderia ser atendida.
A compreensão da dinâmica da oferta africana obrigará a tomar o tráfico atlântico como um mecanismo que, além de reproduzir estruturalmente a força de trabalho na América, também desempenhava um papel estrutural na África. A tal conclusão se chega quando se considera um simples dado: a oferta africana perdurou por mais de 350 anos, sem que, no fundamental, fosse necessário que os traficantes europeus e americanos produzissem diretamente o escravo, ou seja, que o apresassem ou que o exigissem como tributo. Aliás, o exemplo português mostra que, quando se tentou, por meio de guerras, uma maior produção direta dos escravos, desestabilizaram-se as rotas que secularmente alimentavam de braços os portos do Atlântico.
Esse dado, por sua vez, remete à relação entre o comércio negreiro e as contradições internas africanas, fossem estas preexistentes ou não à migração forçada. Daí que a análise da dinâmica interna da oferta passe, necessariamente, por desvendar a natureza estrutural do comércio negreiro na África. Pontualizar esse aspecto implica repensar a articulação entre a economia escravista colonial e as diversas formações africanas envolvidas no tráfico, inserindo estas últimas no quadro geral dos elementos estruturais para a viabilização e permanência da escravidão no Brasil. O tráfico atlântico passa a ser afro-americano por definição, não porque signifique uma migração forçada de africanos para a América, mas sim e principalmente porque desempenha funções estruturais nos dois continentes.
Viu-se ter sido a guerra o principal mecanismo de transformação do homem em cativo. Ela redundava na expansão territorial dos vencedores, o que, nas condições específicas da África pré-colonial, significava a incorporação de povos tributários. O grande peso dos instrumentos bélicos entre os bens que compunham o escambo costeiro, por seu turno, incrementava ainda mais as guerras e, por conseguinte, a capacidade de produção de escravos. Configurava-se um mecanismo retroalimentador, onde o ritmo da rotação era caudatário dos níveis da demanda americana. Para além dessa causa causans, a viabilização de uma produção maciça e continuamente renovável de escravos estava organicamente vinculada não somente à existência de relações desiguais de poder entre os próprios africanos, mas sobretudo ao fortalecimento do Estado, único meio produtor de cativos em grande escala. Não causa surpresa, portanto, que durante o auge do tráfico a maior parte das sociedades africanas sem Estado estivessem situadas fora dos principais eixos do comércio negreiro (Gray, 1977, p.7; Polanyi, 1968). Eis aqui o primeiro papel estrutural do tráfico atlântico na África: à aquisição de bens no litoral correspondia o fortalecimento político e econômico dos grupos dominantes nativos. Acentuava-se a diferenciação social entre as classes e frações de classes, entre as etnias, Estados e mesmo no interior da comunidade doméstica (Miller, 1987).

A segunda dimensão estrutural do tráfico na África, de certo modo ligada à primeira, refere-se à utilização, dentro do próprio continente africano, de parte cada vez maior dos escravos produzidos pela guerra. Também aqui não é gratuito que as pesquisas mais recentes apontem para uma enorme incidência de relações escravistas entre os grandes Estados pré-coloniais. Mas, ressalte-se, não se tratava apenas de incrementar o número de escravos, mas também de modificar a própria natureza do cativeiro preexistente, que perdia sua feição tradicionalmente doméstica para tornar-se uma escravidão cada vez mais mercantil.
Todavia, há que distinguir a produção enquanto sinônimo da violência fundadora da condição de cativo daquilo que se pode chamar de produção social do escravo. Esse movimento permitirá apreender o segredo dos baixos preços do cativo detectado anteriormente. Por produção social do escravo entenda-se a soma dos gastos, em horas/trabalho, necessários à produção e manutenção do homem desde seu nascimento até o instante em que ele se transformava em escravo. Era seu grupo familiar e, em última instância, sua comunidade quem efetivamente o produzia. Antes da mutação em cativo, o indivíduo era, portanto, o repositório de milhares de horas/trabalho despendidas por toda a comunidade (Meillassoux, 1985). Ora, como a violência representava o meio fundamental por meio do qual o homem era retirado de sua comunidade e escravizado, o custo de sua produção social não era de maneira alguma reposto.
A captura significava a apropriação de trabalho alheio que jamais seria pago. Isso dava margem a que todos os elos de intercâmbio que se processavam desde o interior da África até a empresa escravista americana se caracterizassem pela não equivalência. Era não equivalente em termos de horas/trabalho, por exemplo, o escambo de um escravo por dois ou três mosquetões, por dez ou doze fardos de têxteis, ou ainda por quatro ou cinco barris de aguardente. Como em uma correia de transmissão, essa não equivalência se transportava para as etapas de circulação da mercadoria viva na América, quando a compra do cativo em dinheiro não expressava seu real valor social. A guerra, sinônimo aqui da violência fundadora do escravo, estava, portanto, na base tanto da reprodução escravista na América quanto no cerne da diferenciação social e da expansão do fenômeno estatal na África. Era essa a conjugação que permitia o atendimento permanente e maciço da procura americana por braços. Mas essa mesma violência também determinava não somente os baixos preços do cativo na América – e, por isso mesmo, a própria extensão social da escravidão –, como também condicionava as estratégias de rentabilidade da empresa traficante. É o que se verá adiante.
*Trecho extraído das páginas 103 a 106.