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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Os nomes da história

Em Os nomes da História - Ensaio de poética do saber, o principal objetivo de Jacques Rancière é fazer uma crítica às escolas historiográficas mais proeminentes e analisar como cada corrente constrói seu discurso a partir do termo histoire, empregado para História e história. Confira a seguir trecho da obra que já está chegando às livrarias.

Rancière fala da ascensão dos anônimos na História
Uma batalha secular*

“Há mais de um século, os que se interessam pela história, e são muitos, brigam com a palavra.”
Assim fala um dos mestres da disciplina. E à primeira vista parece fácil compreender seu discurso. Os historiadores que quiseram romper com a velha crônica para dar, na medida do possível, à história o rigor de uma ciência tiveram de brigar com os pressupostos e os equívocos ligados ao próprio nome história. Uma história, em sentido comum, é uma série de acontecimentos que se passam com sujeitos geralmente designados por nomes próprios. Ora, a revolução da ciência histórica quis justamente revogar o primado dos acontecimentos e dos nomes próprios em benefício dos longos períodos e da vida dos anônimos. Foi assim que ela reivindicou ao mesmo tempo seu pertencimento à era da ciência e à era da democracia. Num segundo nível, uma história é também a narrativa dessas séries de acontecimentos atribuídas a nomes próprios. E a narrativa se caracteriza comumente por sua incerteza quanto à verdade dos acontecimentos relatados e à realidade dos sujeitos aos quais eles são atribuídos. As coisas seriam muito simples se pudéssemos dizer que toda história, como diz a expressão consagrada, é apenas uma história. É próprio de uma história sempre poder ou não poder ser uma história. As coisas também seriam muito simples se a certeza dos acontecimentos acompanhasse a dos sujeitos. Mas é sempre possível atribuir acontecimentos verídicos a sujeitos de ficção ou de substituição e acontecimentos incertos ou fictícios a sujeitos reais. A história divertida e o romance histórico vivem das voltas e reviravoltas permitidas por essa indeterminação.
Aparentemente, esses problemas não têm mais a ver conosco. A ciência histórica constituiu-se contra a história ficcional e o romance histórico. É por isso que os historiadores da velha escola pregavam a verificação rigorosa das fontes e a crítica dos documentos. É por isso que os historiadores da nova história aprenderam as lições da geografia, da estatística e da demografia. Assim, o material da construção historiadora (historieene) deveria estar resguardado das fábulas de opinião e dos artifícios dos literatos. No entanto, o material não é nada sem a arquitetura. Nós sabemos, no sentido usual da expressão: saber algo não significa ter de pensar a respeito. O que deixamos de considerar é simplesmente o seguinte: a história, em última instância, é suscetível apenas a uma única arquitetura, e sempre a mesma: uma série de acontecimentos ocorreu a tal ou tal sujeito. Podemos escolher outros sujeitos: a realeza, em vez dos reis, as classes sociais, o Mediterrâneo ou o Atlântico, em vez dos generais e dos capitães. Nem por isso deixaremos de enfrentar o salto no vazio contra o qual os rigores de qualquer disciplina auxiliar não nos dão garantia: é preciso nomear sujeitos, é preciso atribuir- lhes estados, afeições, acontecimentos. E é aí que os defensores da velha crônica já esperavam, havia um século, os partidários de uma revolução da história para preveni-los do seguinte: os objetos e os métodos que eles preconizavam para ajustar a história por meio da ciência e das massas apenas tornavam mais indetermináveis as regras da referência e mais inverificáveis as da inferência. Com os bons e velhos métodos devidamente rejuvenescidos, era possível chegar a um grau suficiente de certeza sobre os atos dos príncipes, de seus generais e embaixadores, sobre o pensamento que os animara, sobre as consequências de sua política, as razões de seu sucesso ou de seu fracasso. Com os documentos e sua crítica, podemos separar as séries de acontecimentos seriamente atribuíveis a Luís XIV ou a Napoleão das provocações que negam a existência de um ou das fabulações a respeito do irmão gêmeo do outro. Mas como o rigor das séries estatísticas dará condições ao historiador de sustentar sem risco o enunciado de que a burguesia experimentou tal estado, o proletariado passou por tal evolução ou o Mediterrâneo viveu tal acontecimento? Afastar-se dos sujeitos tradicionais da história e dos meios de verificação ligados à sua visibilidade é penetrar num terreno em que se turva o próprio sentido do que é um sujeito ou um acontecimento, assim como a maneira pela qual se pode fazer referência ao primeiro ou inferência do segundo. Como entender, por exemplo, essa frase típica da nova história: “O deserto conquistador entrou mais de uma vez no Mediterrâneo”? Seguramente, o historiador da era científica quer se afastar da visibilidade cômoda e superficial dos grandes acontecimentos e das grandes personagens. Mas a ciência mais segura que ele reivindica é também uma história mais improvável, uma história que leva ao limite a indeterminação do referente e da inferência próprios a toda história.
Questão de palavras, dirão. É uma infeliz homonímia própria da nossa língua que designa com um mesmo nome a experiência vivida, sua narrativa fiel, sua ficção mentirosa e sua explicação erudita. Rigorosos na caça às armadilhas da homonímia, os ingleses distinguem story e history. Interessados em explorar em sua especificidade a densidade da experiência vivida e as condições de construção do discurso, os alemães separam Historie e Geschichte. Essas referências convencionais podem tapar alguns buracos nas apresentações metodológicas, mas sua virtude acaba aí. Os caçadores de homônimos fazem o mesmo que os outros: atribuem séries de acontecimentos a sujeitos. É que não há mais nada a fazer, a não ser justamente não fazer mais história. E os caçadores de homônimos aderiram em geral à escola das vítimas da homonímia, reconhecendo nos Annales a paternidade da revolução científica do discurso histórico. A razão para isso é tão simples em seu fundo que chega a ser paradoxal em sua aparência. Era necessária precisamente a confusão da língua para avaliar o dilema em seu rigor: a ciência histórica nova não deveria mais ser uma história e ainda assim ser uma. A diferença da história-ciência para a história-narrativa deveria ser produzida no interior da narrativa, com suas palavras e com seu uso das palavras.
Porque a batalha da nova história tem logo de saída dois fronts. Diante da velha escola que se gabava de dar à história toda a certeza da qual ela era suscetível, encontravam-se, debruçados sobre o berço da história nova, os bons e os maus apóstolos da ciência. E estes, é claro, a encorajavam a dar o passo decisivo que a colocaria no terreno da certeza científica: deixar de lado os acontecimentos, suas sucessões insignificantes ou suas causalidades arriscadas; substituí-los pelos fatos: os que não se atribuem mais a um sujeito particular, mas que se observam em sua repetição, se deixam classificar de acordo com suas propriedades e se correlacionam com outros fatos do mesmo tipo ou com outros tipos de fatos. E indicavam-lhe todos os meios para encontrar as fontes e utilizar os métodos apropriados aos seus novos objetos. A nova história ficará honrada de ter seguido a lição dos estatísticos por intermédio dos sociólogos e dos economistas. Reconhecerá sua dívida com a provocação de um Simiand, que derrubou os três ídolos da velha história: os ídolos político, cronológico e individual. Contudo, muito antes de Simiand, um filósofo obscuro chamado Louis Bourdeau havia esboçado polemicamente, num calhamaço publicado em 1888, o cenário emblemático da nova história: o grande mar, que o vento mal consegue encrespar, opondo a calma de suas profundezas às marolinhas dos indivíduos e dos acontecimentos. Qual era, perguntava ele, a amplitude real dos acontecimentos mais estrondosos? A Revolução Francesa não existiu para 400 milhões de chineses e, mesmo na França, “a voz dos mais impetuosos tribunos e o canhão das mais retumbantes vitórias” não chegaram até as camadas mais profundas da população. “Em tal vale distante, em muitas aldeias tranquilas, nem se ouviu falar desses acontecimentos cujo barulho parecia tomar o mundo.” Mas não é necessário falar dos vales distantes. No suposto centro do abalo sísmico, o acontecimento mal roçou a superfície das coisas:

Sejam quais forem os acontecimentos, cada um
continua a praticar seu ofício habitual. Semeiam,
colhem, fabricam, vendem, compram, consomem
conforme a necessidade e o uso [...]. Nos dias mais
sombrios do Terror, 23 teatros prosperavam em Paris.
Representavam a ópera Corisandre “com seus 
divertimentos”, peças bufas ou sentimentais; os cafés
ficavam cheios de gente, os passeios eram muito
frequentados.

A conclusão se impunha por si mesma:

Para quem contempla a ordem geral e toda a sequência dos fatos,
nenhum acidente particular parece digno de estudo.
É no oceano das coisas humanas que as flutuações das ondas
se misturam umas às outras. O pescador cujo barco se movimenta
acredita ver em torno dele montanhas e abismos; mas
o observador ao longe da costa percebe apenas uma
superfície lisa, que mal se encrespa com a flutuação e
termina no horizonte numa linha de nível imutável.

*Trecho extraído das páginas 1 a 7