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quarta-feira, 4 de março de 2015

A ruptura da filosofia

Por João Lanari Bo, para o Correio Braziliense*

Nietzsche: contestação radical a Hegel
Os fãs do hilário Monty Python com certeza se lembrarão de um dos sketches mais “filosóficos” do grupo— nada menos do que uma partida de futebol de filósofos, gregos contra alemães (disponível no Youtube). No ranking mundial da filosofia, estas são as seleções mais competitivas, sem dúvida. Os gregos tiveram seu apogeu há uns 2.500 anos, mas continuam batendo um bolão. Os alemães já vinham com força e explodiram no século 19—um século que começou com a Revolução Francesa, em 1789, e terminou no início da Primeira Grande Guerra, em 1914. Karl Lowith, genial compilador que nasceu na Alemanha, em 1897, escreveu um poderoso ensaio para dar conta dessa explosão, tomando por base duas referências capitais: Hegel e Nietzsche. Lançado em 1939, seu livro chegou ao Brasil somente no ano passado, publicado pela Editora Unesp.

Afinal, para que serve a filosofia? Não faltam respostas, para todos os gostos. Georg W. Hegel, com um tom um tanto sucinto, escreveu que a “filosofia começa com o declínio de um mundo real ...Os filósofos da Grécia se retiraram dos negócios de Estado; eles eram ociosos, tal como o povo os denominava, e se recolheram ao mundo dos pensamentos”. Ócio, para os gregos, não tinha esse sentido algo negativo que atribuímos hoje: era a atividade mental por excelência, sem intromissões externas. Resumindo: o distanciamento da reflexão proporciona a possibilidade do emprego da razão nos grandes temas que nos assolam.

No livro de Lowith, estes podem ser a crítica da religião e as vicissitudes do espírito absoluto; a transformação da filosofia do tempo histórico e o conceito de sociedade civil; ou a problematização do mundo burguês e os fundamentos da economia política. Hegel é uma espécie de encruzilhada incontornável de tudo isso: da dialética hegeliana saíram boa parte das produções filosóficas que vieram a exercer impacto profundo no mundo, sobretudo no ocidental. Karl Marx, cuja importância é desnecessário sublinhar, foi um expoente da “esquerda hegeliana”; o brilhante dinamarquês Soren Kierkegaard, uma das fontes do existencialismo moderno, alinhava-se com a “direita hegeliana”: e, enfim, Friedrich Nietzsche, que paira além do bem e do mal, talvez o mais popular dos filósofos e crítico devastador da moral cristã, foi o grande herdeiro dessa ruptura revolucionária na filosofia do século 19.

Quando a partida do Monty Python começou, os “jogadores” simplesmente caminhavam em campo, esquecendo-se da bola e absortos em reflexões. A ironia é mordaz, insinuando uma desatenção contumaz na prática filosófica. Nada mais equivocado: no tempo de Hegel, por exemplo, a história experimentou uma aceleração inédita: no campo político, com os desdobramentos da Revolução Francesa; no econômico-tecnológico, com a chamada revolução industrial. É conhecido o apetite do filósofo para a leitura matinal dos jornais, “uma espécie de prece realista”, como ele dizia. A assimilação do tempo histórico foi um dos catalizadores do seu pensamento. E cada passo no desenvolvimento do “espírito do tempo”, lembra Lowith a propósito de Hegel, é um progresso na consciência da liberdade.

Embora seus discípulos, muitas vezes, repudiassem ferozmente o mestre, é certo que a força revolucionária da filosofia hegeliana materializou-se por meio dos seguidores, como é o caso de Marx. Escreveu Michel Foucault: “toda nossa época, que seja pela lógica ou pela epistemologia, que seja através de Marx ou através de Nietzsche, tenta escapar de Hegel”. Ao fim e ao cabo, só resta a adesão.

Em tempo: na partida do Monty Python os gregos venceram, com um gol polêmico de Sócrates—o replay revela que o filósofo estava impedido. Marx reclamou muito mas foi Nietzsche quem levou o cartão amarelo.

*João Lanari Bo é professor de cinema da UnB. Resenha publicada dia 28 de novembro.