segunda-feira, 13 de outubro de 2014
As sequelas intangíveis da guerra
Por João Lanari Bo*, para o Correio Braziliense
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Gumbrecht: pensador global, que usa referências culturais brasileiras |
Hans Ulrich Gumbrecht, um alemão que se mudou para a Califórnia e ensina na Universidade de Stanford, é dos raros pensadores de importância global que utiliza, sem hesitações, referências literárias brasileiras. Sim, é isso mesmo; Depois de 1945, um instigante exercício sobre a “presença latente” das sequelas da Segunda Grande Guerra, recém publicado pela Ed. Unesp, fala de João Cabral e Guimarães Rosa com uma desenvoltura invejável, ao lado de figuras carimbadas como Celan, Sartre, Beckett, Camus, Rossellini, Heidegger e outros menos votados. A estratégia, aliás, é exatamente essa: articular uma constelação de citações, sobretudo literárias, para captar uma espécie de “substrato de experiência histórica”, em que os fenômenos culturais “produzem algum impacto sobre nossos sentidos e nossos corpos”.
Para o leitor brasileiro, é um alívio sentir-se integrado nessa teia de pensamento. A sensação de não ocupar a periferia da história (e da cultura), ainda que de modo efêmero, é um salto epistemológico. Gumbrecht reúne de modo aparentemente aleatório uma série de “climas” ou “disposições” contidos em estado latente nas diversas produções em circulação depois de 1945, para sacar uma espécie de “presença clandestina” dos limites, desvios e descarrilamentos no mundo contemporâneo, depois de um trauma como a Segunda Guerra Mundial.
Rastros da agonia
Nascido em 1948, herdeiro dessa agonia coletiva sem precedentes, Gumbrecht inclui-se na geração que experimentou o horror da guerra por meio das narrativas, marcas e rastros da violência. Como alemão, assimilou, à revelia, uma pesada culpa histórica, que exorcizou pelos estudos da literatura medieval, dos livros dos séculos 18 e 19, e finalmente pela “epistemologia do cotidiano”. Com esse background, sua leitura identifica correlações insuspeitas entre a rigorosa “poesia da pedra” cabralina com as metáforas quase indevassáveis de Paul Celan, o magnífico poeta judeu de origem romena, que escrevia em alemão e suicidou-se pulando da ponte Mirabeau, no rio Sena, em Paris.
A correlação entre Cabral e Celan, nos poemas do pós-guerra, tem a ver com a “morte que nos redime do perigo, da dor, da tortura”: em Celan, trata-se de um permanente olhar sobre a precariedade da existência de alguém que sobreviveu ao holocausto; em Cabral, é uma mirada sobre os cemitérios de Pernambuco, cujo chão, “para as pessoas que trabalhavam na cana”, é “instável e ondulado”. Em ambos, o que importa é recolher uma “materialidade da experiência estética”, algo que nos “toca” (quase) de modo físico, tátil e acústico. A recordação prognosticada pelas palavras sobrevive de forma latente em nossas consciências, configurando uma presença que nos faz recordar os impasses e abismos que a condição humana de frontou- se no day after do conflito.
“Sem entrada e sem saída”, uma das chaves que o nosso autor utiliza para expressar “latências” adormecidas em grandes obras literárias, serve para sintonizar um texto preciso e potente como Esperando Godot, de Samuel Beckett, estreado em 1953, com o barroco cerebral de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, escrito em 1956. A peça de Beckett, presente também nas outras chaves de leitura — “Má-fé e interrogatório”, “Contentores e descarrilamento”— atravessa todo o livro, e funciona como um emblema de tudo o que Gumbrecht quis dizer em “Depois de 1945”. “Godot” é um caso singular de texto teatral que se tornou um substantivo da língua, pela força da imagem que evoca.
Mas não é somente a literatura a enriquecer o texto do alemão: a alta cultura convive com as mais variadas citações midiáticas, desde o indefectível seriado de tevê Papai sabe tudo, alegoria do otimismo dos anos 1950, até o famoso relatório Kinsey, lançado em 1948 nos Estados Unidos, que esquadrinhou o comportamento sexual de homens e mulheres como nunca antes na literatura científica. Ambos são “configurações de conhecimento” que, de alguma maneira, expõem a “latência como origem do presente”. Nada mais latente no imaginário pós-guerra, aliás, do que a hecatombe nuclear, explicitada no limite radical experimentado em Hiroshima e Nagasaki.
Armas nucleares
Gumbrecht alude à correspondência entre Claude Eatherly — piloto integrante da missão que jogou a primeira bomba, em 6 de agosto de 1945, internado em 1958 para tratamento psiquiátrico — e o filósofo austríaco Gunter Anders, para concluir que “a memória do primeiro uso de armas nucleares veio a representar a sensação onipresente de que a humanidade deixou de controlar seu próprio destino”. A bomba atômica e todos seus desdobramentos — Guerra Fria, cinismo dos Estados que a possuem, suposta contenção nuclear — fornece alguns dos contornos do “mundo material” que nos rodeia, contribuindo para a formação de um “clima” ou “disposição” (a palavra em alemão é “stimmung”) que insiste em provocar “sensações físicas ou emocionais vinculadas a um momento histórico”. Em um país como o Japão, naturalmente, é possível encontrar inúmeras situações de “stimmung” resultantes do lançamento da bomba, na cultura, religião e sobretudo na política.
Os “climas” ou “atmosferas” emergem como reação ou consequência da “latência”, ao mesmo tempo que preservam o que está latente. São invisíveis: “aquilo que está ali, mas fora da vista”. Mas desempenham um papel fulcral em nossas vidas. A investigação de Gumbrecht, com sua enumeração voraz de fatos e produtos da cultura que estão de alguma forma ligados à “atmosfera” do pós-guerra, revela-se uma espécie de cartografia sentimental e melancólica da subjetividade moderna. Mesmo Brasília, visitada pelo autor em 1966, comparece nesse desfiar de memória afetiva – Hans Ulrich Gumbrecht tirou 36 fotografias daquilo que chamou de “monumento a uma utopia de esquerda que o passado projetara para o futuro”. “Depois de 1945”, enfim, está ao alcance da mão.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília