sexta-feira, 27 de março de 2015
Depois de 1945*
Por Kelvin Falcão Klein*
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Gumbrecht insiste na apreensão subjetiva do tempo e da história |
O livro de Hans Ulrich Gumbrecht, Depois de 1945: latênciacomo origem do presente, recentemente lançado pela Editora Unesp (tradução de Ana Isabel Soares, 2014), apresenta como introdução uma breve reminiscência infantil: alguém identificado como “S” está no carro com seus pais, em direção à casa dos avós no interior da Alemanha, para a celebração do Natal. Na estrada, diante deles, seguia um tanque americano que, de súbito, “começou a guinar à esquerda e girar em círculos, como se entrasse numa dança selvagem, irresistível e em aceleração cada vez maior”. O resultado foi a destruição de um Fusca que ia logo à frente do tanque, transformado “numa sucata que não se parecia mais em nada com um automóvel”. O menino “S” fica impressionado com o que aconteceu, “imaginando os dois corpos humanos fundidos naquela bola de metal que antes havia sido um automóvel”.
Quase duzentas páginas depois, a história retorna, mas agora narrada na primeira pessoa – Gumbrecht se identifica diretamente com a reminiscência de “S”, agora é ele quem conta, a história do tanque americano faz parte da sua infância. Mas essa repetição do relato da lembrança deve levar em consideração tudo que foi escrito e apresentado nessas duzentas páginas, ou seja, o esforço de Gumbrecht de perceber, nos artefatos culturais do imediato pós-guerra – filmes, livros, artigos de jornal, diários, reflexões filosóficas, poemas –, uma série de indícios de que a História havia saído dos trilhos. Esses indícios levavam a uma espécie de angústia difusa com relação não apenas ao futuro, mas também com relação àquilo que, vindo do passado, segue influenciando a vida do presente.
O primeiro elemento a destacar em Depois de 1945, portanto, é que dispensa a necessidade de um objetivo fixo e determinado, preferindo, ao invés disso, transitar criticamente por um período histórico, em busca daquilo que Gumbrecht (na esteira de, entre outros, Leo Spitzer) denomina Stimmung – uma atmosfera, clima ou ambiência que se experimenta de modo subjetivo. Essa busca dá coerência ao projeto, que mescla referências de múltiplas coordenadas culturais e geográficas: ainda que o foco principal seja a experiência alemã do pós-guerra, referente à infância do próprio Gumbrecht, e que ele relaciona às obras de Martin Heidegger, Bertolt Brecht, Carl Schmitt e Wolfgang Borchert, Depois de 1945 articula também elementos da França (Sartre, Camus, Edith Piaf), da Itália (a poesia de Pasolini, os filmes de Roberto Rossellini), da União Soviética (os romancistas Boris Pasternak e Yuri Trifonov) e do Brasil (João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa).
Esses poemas, romances, artigos e proposições filosóficas lidam todos, argumenta Gumbrecht, em maior ou menor grau, com uma série de latências advindas da experiência direta da II Guerra Mundial. “Viver na certeza de uma presença que não tem identidade é viver num estado de latência”, é uma das definições dadas por Gumbrecht do termo, ou ainda: “a sensação, vaga mas segura, de que o futuro continha armazenado um momento decisivo de desvelamento”. Nesse sentido, a obra de Gumbrecht pode ser lida em consonância com um conjunto de outras obras relacionadas, como as de W. G. Sebald (sua discussão sobre a memória alemã do pós-guerra em Guerra aérea e literatura) e Hans Magnus Enzensberger (no recente livro híbrido Hammerstein ou a obstinação), ou mesmo do mais recente Nobel de Literatura, o francês Patrick Modiano, que se ocupa sobretudo das ressonâncias do colaboracionismo francês durante a ocupação nazista.
Com Depois de 1945, Gumbrecht aprimora uma investigação que abarca também seu livro Em 1926: vivendo no limite do tempo, que lançou originalmente em 1997. Essa investigação lida, entre outros temas, com o confronto entre dois paradigmas de relacionamento com o passado: de um lado, a perspectiva que investe no trabalho do passado, ou seja, a possibilidade de deixá-lo para trás como condição para a construção do futuro; do outro lado, a perspectiva que investe em uma nova noção de temporalidade, que recusa o abandono do passado. Para Gumbrecht, as duas perspectivas estão frequentemente sobrepostas, em uma variedade quase infinita de combinações e situações – nosso presente é carregado de influências temporais e históricas concomitantes. A solução encontrada por Gumbrecht para, até certo ponto, clarear o terreno, é insistir na apreensão subjetiva do tempo e da história, por isso que Depois de 1945 é, ao mesmo tempo, um livro técnico, crítico, reflexivo e profundamente pessoal.
*Artigo publicado originalmente na revista Subtrópicos de fevereiro de 2015.