“Ao longo de quatro décadas (1880 a 1920) os judeus imigrantes e suas famílias foram se instalando no território brasileiro. Espalharam-se da Amazônia ao Rio Grande do Sul. Percorreram vários países da América Latina, mas, com exceção da Argentina onde a maioria se fixou, escolheram o Brasil. Com o crescimento da imigração o apoio individual aos recém-chegados se tornou insuficiente. A comunidade progressivamente desenvolveu várias formas de solidariedade, a ajuda se institucionalizou. Serviço médico, creche para as crianças, escolas comunitárias, locais de culto, aos poucos foram sendo criados.
A preocupação fundamental era voltada para manter as condições de vida. A morte, o cemitério teve de esperar.
A saga para construir um cemitério judaico enfrentou radical oposição da igreja católica, que não aceitava cemitérios seculares ou de outras religiões. Esse processo foi minuciosamente pesquisado e relatado pelos excelentes pesquisadores Valadares, Faiguenboim & Andreas (2009).
Como vimos nas histórias das famílias, a preocupação em dar melhores níveis educacionais aos filhos e de proporcionar a eles um contato com a comunidade judaica foi forte razão para mudar para São Paulo. Construir uma comunidade judaica responsável, idônea, adequada aos padrões da sociedade brasileira tornou-se uma preocupação constante. Evitavam qualquer suspeita de infração que os pusessem em estado de desconfiança, de perigo. Eram estrangeiros que carregavam um passado de perseguição. A moralidade lhes impunha que não convivessem com a prostituição e os exploradores de mulheres. Conheciam o que acontecia na Argentina onde existia o Zvi Migdal, organização de exploradores do lenocínio e de tráfico de mulheres para a prostituição. Procuravam se afastar desses grupos. Quando vinham companhias de teatro ídiche se exibir na cidade, não permitiam que as prostitutas e seus agenciadores freqüentassem os espetáculos junto com a comunidade: havia até mesmo sessões especiais para aquele grupo.
Contudo, as prostitutas judias mantiveram sua fé e os ritos judaicos: construíram suas sinagogas e seus cemitérios em São Paulo, no Rio de Janeiro (tema que merecerá mais pesquisas). Na época de nossa pesquisa a sinagoga delas já havia sido destruída. Mas um dos cemitérios estava intacto. Sobre ele serão expostos os dados que foram coletados e seu significado.
A instalação do primeiro cemitério israelita, o da Vila Mariana, resultou de lei encaminhada pelo prefeito Washington Luís em 2 de maio de 1919. Só depois de quatro anos, em 21 de julho de 1923, cumprindo todas as exigências, a Câmara Municipal aprova a autorização para a instalação do cemitério israelita em terreno doado por Maurício Klabin.
Este cemitério era destinado aos “israelitas” que viviam em São Paulo ou outras cidades. Nele as prostitutas e suas famílias não tinham lugar.
Em 17 de janeiro de 1981, no início desta pesquisa, visitei o Cemitério Israelita de Cubatão, pertencente à Sociedade Beneficente e Religiosa Israelita de Santos. Era então pouquíssimo conhecido e me foi indicado pelo doutor Moyses Wagon, cuja família morara na cidade. Constava que ali só eram enterradas prostitutas. Fora fundado em 19 de janeiro de 1930.
Em entrevista, o senhor Aluisio Alves Rabelo, funcionário da prefeitura de Cubatão, relatou que o cemitério não tem “interessado a ninguém”, não tem havido enterros, e que por essa razão, em 1979, a prefeitura diminuiu o terreno. Ao lado há um cemitério católico, que data de 1902.
A planta original do cemitério israelita foi assinada em 22 de novembro de 1929, por Suzana Rosenroth, Juana Schlinger, Sabina Albert e F. de Aguiar. Contou o zelador do cemitério que este era “de uma sociedade cujos sócios só entravam se fossem da mesma religião” e lá eram enterrados, “menos as crianças”. “A cova se abria na hora.” Os mortos, mulheres e homens, vinham de Santos. Contou também que “os caixões eram todos iguais, cobertos com um pano preto”.
Logo à entrada do cemitério, há uma pia com uma caneca para que os que saem lavem as mãos, hábito de todos os cemitérios judaicos. A pia e a caneca foram doadas, conforme as inscrições: “Oferecido por Sara Mechlin” e “Oferecido por Adélia Balbir e Elvira Hechtman”.
Do lado direito de quem entra, só estão enterradas mulheres, e à esquerda, os homens. O que me chamou a atenção naquela visita foi verificar que havia também homens sepultados: elas eram 44, e eles 24, conforme listagem na prefeitura.
Há túmulos com fotografias, assemelhando-se aos cemitérios cristãos das décadas de 1920-1930. Neles há inscrições carinhosas:
No túmulo de Annie (Anita) Synberlist (15/8/1892 – 3/12/1955 ou 65 [ilegível] há sua foto e a inscrição: “Saudades de sua filha, genro e netos”.
No de Liba de Queiroz (7/2/1878 – 28/5/1948): “Última recordação de seu esposo, irmã e sobrinhos”. Em hebraico, a inscrição diz: “Liba, filha de Isic Leraimer, nascido em Odessa”.
No de Maria Marcus (19/4/1880 – 23/4/1944) a inscrição diz: “Saudades de sua irmã Malka Bat Levi (Malka filha de Levi)”.
No túmulo de Ainda Bisbin, a inscrição diz: “Minha mamita morreste, foste com Deus. Mas viverás eternamente no coração de teu querido mamito”.
No túmulo de Rosa Steinhouser, nascida em Przemis, Áustria (3/1/1880 – falecida em 1932): “Saudades de sua família”. Nele, há foto de Rosa.
No de Dvoire, filha de Abraham Ehmitalzen: “Saudades eternas de sua filha”. Na parte masculina, no túmulo de Jaime Rubin (22/12/1888 – 12/3/1948), a inscrição diz: “Saudades eternas de sua esposa e filhos”.
No túmulo n.1.247 [nome ilegível]: “Saudade de sua esposa Imilia Chantak”.
Prostitutas e rufiões se identificavam: não escondiam suas origens, colocavam seus nomes e sobrenomes e identificavam suas famílias; as inscrições incluem filhos, outros parentes e por vezes os nomes dos pais. Excluídas(os) dos cemitérios judaicos da comunidade por suas atividades profissionais, buscaram confirmar sua identidade judaica por meio de um enterro judaico. Fica claro que o vínculo com o judaísmo não dependia dos demais judeus. A identidade era assumida e completada por meio dos rituais mortuários.
Construíram para si, além do cemitério, uma sinagoga à Rua Ribeiro da Silva, em São Paulo, demolida em 1980.
A comunidade judaica reproduzia os comportamentos da sociedade brasileira; utilizavam-se das prostitutas, mas as excluíam de suas relações sociais. Mulheres não queriam ser confundidas com as “polacas”; os homens marcavam diferença dos rufiões muitos ligados à Zvi Migdal. A comunidade os excluía de seu convívio mesmo depois de mortos. Muitas prostitutas construíram famílias e obtiveram, como o fizeram na capital de São Paulo e na do Rio de Janeiro, um local onde o ritual judaico do sepultamente podia ser realizado. Marginalizadas, não deixaram que lhes subtraíssem a identidade. Eram prostitutas, eram judias e tinham família.
O caso das judias prostitutas vem causando grandes debates dentro da comunidade e perplexidade fora dela.
Recentemente o Cemitério de Cubatão foi inteiramente reorganizado, ajardinado, e se mantém em estrita ordem.”
Capítulo III – Brasil: o futuro construído, págs. 150 a 155.