Com erudição e percorrendo da literatura ao discurso político e construções teóricas (Max Weber, Georg Simmel, Nietzsche e Hannah Arendt, em particular), Eleni Varikas descreve nesta obra as metamorfoses do termo “pária” e apresenta figuras que foram vistas dessa forma ao longo do tempo. No percurso, ela mantém sempre presente os atuais párias rebeldes que obstinadamente exigem ascender ao posto de indivíduos humanos.
Os últimos serão os primeiros? *
Nietzsche é o primeiro a utilizar a palavra “pária” (ou “tchandala”) ao se referir à revolta dos grupos sociais mais desfavorecidos contra as camadas privilegiadas. Ao desmascarar a hipocrisia de uma burguesia triunfante, proclamou em voz alta o que a anima na realidade, por detrás de seus princípios pretensamente universais e humanistas: “A vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco [...]”. Em discordância com uma cultura que alega que “a ação moral seria razoável”, ele afirma que a vontade de poder representa, desde sempre, o princípio da vidana terra, o “fato primordial de toda a história” e que a “moral dos senhores”, que dele deriva, apoia-se na “equação de valores aristocrática (bom = nobre = poderoso = belo = feliz = caro aos deuses)”.Para Nietzsche, essa moral dos senhores desmorona sob a influência do espírito moderno e de seus postulados democráticos, dos quais a Revolução Francesa constitui o ponto culminante. É o coroamento de um longo processo subterrâneo, de vários séculos, durante os quais se preparou a revolta dos escravos na moral que remonta à tradição judaica retomada pelo cristianismo. “Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática [...] e se apegaram a essa inversão, a saber, os miseráveis somente são os bons.” De Jesus de Nazaré, última “isca” de um povo pária para impor o triunfo de sua moral de escravo, à “canalha socialista”, segundo ele, essa genealogia não parou de operar uma transmutação radical dos valores dominantes, minando a hierarquia social e transformando os oprimidos, os excluídos, os subalternos em sujeitos privilegiados de uma redenção futura.
Vimos, no primeiro capítulo, o contexto semântico e político, marcado pelo imaginário racista, da circulação do termo “tschandala” na cultura germanófona da virada do século XIX e as metáforas de degenerescência racial utilizadas por Nietzsche para ilustrar a genealogia pária da moral. O conjunto dessa temática mereceria ser revisitado, numa perspectiva de correlação entre “forma” e “conteúdo”. Uma tal perspectiva, curiosamente ausente das leituras mais minuciosas de Nietzsche, traria à luz os estereótipos racistas quemodelam os termos nos quais se desenrola o pensamento teórico do filósofo alemão e limitam seu alcance crítico. Mas o que nos interessa aqui é a perspicácia de uma análise que conceitualiza uma moral propriamente pária, dessa vez, no sentido pejorativo de delinquente e, diríamos, colonial do termo, como indica o amálgama de metáforas organicistas e do cientificismo racista, que ressignifica o vocabulário do pária (“o odor da decadência”, o “judeu perturbado” e o “negro” como representações emblemáticas do Outro, o “cachorro” remetendo ao “pariah dog” e que, no vocabulário de Nietzsche, porta as características do judeu, da mulher, do escravo). Apesar de sua violenta denúncia da “conjuração” permanente dos párias – ou talvez por causa dela –, Nietzsche oferece uma entrada privilegiada para esclarecer alguns aspectos do processo ideológico que marca a consciência pária e, mais amplamente, a consciência dos oprimidos nas sociedades modernas.
Raras são, com efeito, as revoltas de oprimidos não caracterizadas, ao menos num primeiro momento, por essa articulação entre a inversão da escala hierárquica dos valores dominantes e o desenvolvimento de escatologias messiânicas religiosas ou seculares. A Revolução Francesa é um exemplo perfeito disso, ela que fez da construção de um Estado-nação – exemplo de particularismo histórico por excelência – o símbolo de uma redenção universal.
Segundo Max Weber, ao contrário das comunidades étnicas não párias, que podem acreditar na supremacia de seus próprios valores ou modos de vida, a comunidade pária é coagida, de fato, a reconhecer que não poderia aspirar à honra conferida aos grupos privilegiados que a excluem. Entretanto, mesmo os povos párias mais desprezados conseguem manter, de alguma maneira, a crença em sua dignidade. Com a diferença de que o sentido de dignidade não se alicerça sobre a mesma base de referência, conforme seja um grupo privilegiado, ou, ao contrário, um grupo desprezado. No primeiro, é o sentido atual do grupo aqui e agora, sua superioridade e sua excelência que justificam a supremacia: seu reino é deste mundo.
Por outro lado, num grupo desprezado, o sentido da dignidade se alicerça num futuro a construir neste mundo ou no além. Segundo Weber, a dignidade pária se apoia “numa ‘promessa’ que lhes foi ‘assegurada’, ligada a uma ‘função’, uma ‘missão’ ou uma ‘vocação’ a eles designada”. Essa promessa é constitutiva do que é considerada a própria “essência” do grupo dominado, ou seja, do que o diferencia das camadas dominantes e o transforma em objeto de opróbrio ou de desprezo.
A altivez e a honra do pária estão, pois, intrinsecamente ligadas a um certo tipo de religiosidade da salvação, que se desenvolve mais amiúde nas camadas mais desfavorecidas, as que justamente sentem mais intensamente a necessidade de redenção. A “sede de uma dignidade que não lhes é concedida neste mundo produz essa concepção da qual emerge a ideia de uma Providência”; ou seja, de uma instância divina, que possua outra hierarquia de condição social. Uma instância que dê, assim, um sentido à situação dos párias, pela promessa de uma retribuição justa “no futuro ou no além”. Desse modo, desde o século XIX, como sabemos, diversos grupos sociais se identificaram a essa ideologia de “povo eleito”: a nação, o povo, os pobres, sobretudo o proletariado, viram-se investidos da missão providencial ou histórica de salvar a humanidade ou a “civilização”.
* Trecho extraído das páginas 133 a 137