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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A coluna da morte

Exilado, Cabanas retorna ao Brasil em 1930
Relato clássico de João Cabanas (1895-1974) da sangrenta Revolução de 1924, que tomou de assalto a cidade de São Paulo entre 5 e 28 de julho, deixando um rastro de destruição e morte. Durante aqueles dias cerca de 400 mil pessoas deixaram a capital, então com 700 mil habitantes, para sair da mira de granadas, tiros de artilharia pesada e até bombardeios aéreos, que resultaram em centenas de feridos e 5 mil mortos. O livro chega às livrarias ainda este mês. Confira trecho inédito*: 

A minha movimentação de trincheira em trincheira era contínua, pelo que sempre fui obrigado a expor-me e mesmo a tornar-me conhecido do próprio inimigo que não cessava de fazer-me alvo de sua pontaria. Se existe qualquer coisa capaz de imunizar um homem em combate, essa qualquer coisa estava comigo e me protegia escandalosamente.

Passei na minha posição parte do dia 15 em relativa calma pela trégua que me concedeu o inimigo, permitindo-me, por isso, sair de vez em quando em excursão pelas Ruas Caetano Pinto, Carneiro Leão e outras, onde levava socorros às vítimas do bombardeio que nesse ponto sofria a cidade por parte dos canhões governistas.

Os tiros de artilharia de grosso calibre não cessavam. Famílias inteiras pereciam sob essa calamidade. O próprio Hospital do Brás serviu de alvo aos tiros dessa artilharia que fez aí numerosas vítimas. Nas Ruas Visconde de Parnaíba e Caetano Pinto caiu uma granada na casa de uma família, sendo esta dizimada por completo. A vizinhança apavorada atirou-se à rua e, indecisa quanto ao rumo a tomar em busca de abrigo, aglomerou-se numa calçada, formando um compacto grupo de senhoras e crianças. Nisto, bem no centro desse grupo, explode uma outra granada 105 e a hecatombe foi bastante horrível. Difícil descrever seria, a confusão que se estabeleceu. Gemidos, gritos, lamentos, elevavam-se de entre a rubra sangueira e corpos despedaçados que ali jaziam.

Vingava-se assim o governo do acolhimento que a população paulista dava às forças revolucionárias.

Ignorava o general inimigo onde estavam localizadas as forças revolucionárias? Fogo sem cálculo!... Sem pontaria!... A esmo!...

Grande era o alvo: todo o perímetro da cidade de São Paulo. A revolução estava dentro desse alvo; logo, as balas que nele acertassem, atingiriam a revolução. Tal raciocínio serviu de guia ao supremo comando das forças do governo. Daí esse despejar de balas de grosso calibre sem eficiência militar e que tantas censuras mereceu do general Abílio de Noronha.

De fato, quem menos sofreu com o estúpido bombardeio da bela capital paulista foi justamente o exército revolucionário. Enquanto as granadas  feriam levemente a um soldado qualquer, matavam centenas de civis, na maioria mulheres e crianças. Somente assim se poderiam tornar célebres, na terra dos bandeirantes, de onde, até hoje, partiram todas as bandeiras de liberdade e progresso pela voz altiva e máscula de seu povo, os generais Eduardo Sócrates, Villa Lobo1 e Potiguara. Este mais tarde foi a São Paulo, onde o governo lhe preparou uma grandiosa manifestação, obrigando a ela comparecer as famílias dos funcionários públicos, sob pena de demissão de seus chefes. Entre os manifestantes, quem não era míope poderia ver senhoras com os olhos marejados de lágrimas e ainda de luto pela morte de entes queridos vítimas daquele bombardeio sem precedentes.

O povo brasileiro, que tanto se comoveu e indignou contra a ação da artilharia alemã sobre as cidades abertas da Europa, não pôde levantar um brado de protesto contra o bombardeio de uma das principais cidades da América do Sul. Intimamente este protesto existia no peito de cada cidadão, mas impossível era irromper. Onde houvesse um grupo de dois ou mais cidadãos, no Rio ou em São Paulo, existia também a dois passos um feroz representante da polícia secreta. Nem passageiros nos automóveis de praça podiam fazer comentários desfavoráveis ao governo; quem a isso se aventurasse era logo levado à delegacia mais próxima e metido no xadrez; cada chofer, com raras exceções, era um rafeiro policial mantido pela verba secreta.

*Trecho extraído do capítulo “Ataques do general Potiguara – Coragem pessoal – Vítimas do bombardeio – Regime da rolha”, páginas 44 e 45.