quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
A presença dos mitos em nossas vidas
Até o fim do ano a Editora Unesp lança A presença dos mitos em nossas vidas, de Mary Midgley. A obra trata da presença quase inextricável dos mitos na vida dos seres humanos, no seu dia a dia e no seu inconsciente, numa abordagem entre filosófica e antropológica, recorrendo ainda à psicologia para pensar em como se constroem universos particulares. Confira trecho inédito:
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Descartes: racionalidade indevidamente estreita |
Esperanças delirantes*
Precisamos parar de tratar a “ciência” como se ela fosse uma entidade monolítica única, um reino sólido posicionado para combater reinos rivais. Por um lado, as várias ciências diferem enormemente entre si. A ecologia e a antropologia não são, de forma alguma, iguais à física e nem à biologia; isso não é desastroso porque não é necessário que seja assim. E, por outro lado, precisamos parar de tratar essa entidade chamada “ciência” como um império em expansão, destinado a assumir um dia todo o mundo intelectual. Nossas dificuldades atuais acerca do meio ambiente e acerca dos direitos humanos são grandes problemas que precisam do trabalho conjunto de todo tipo de disciplina intelectual – da ética à computação, da antropologia ao direito e da ciência do solo à história russa. A intensa especialização acadêmica que prevalece hoje já torna essa cooperação bastante difícil, e sem o acréscimo dos obstáculos extras impostos por guerras tribais.
O imperialismo científico tem sido intimamente associado com a tentativa de reduzir todas as várias ciências em um modelo único, como fica claro a partir da maneira como o Movimento de Unidade da Ciência [Unity of Science Movement], nos Estados Unidos, vem se dedicando a insistir na onicompetência. Ambos os equívocos, na verdade, provêm em igual medida de um conceito de racionalidade indevidamente estreito e monopolista, um conceito que, basicamente, ainda extraímos de filósofos do século XVII, como Descartes (esse é apenas mais um exemplo em que aqueles que se recusam a manter qualquer relação com a filosofia tornaram-se escravos de formas antiquadas dela).
Quando Descartes se lançou em sua famosa busca pela certeza absoluta, ele não partiu, como seus escritos sugerem, com a mente totalmente aberta em relação a onde poderia encontrá-la. Seu olhar já havia pousado em Galileu. Ele já havia decidido que o tipo de clareza lógica encontrada nessa nova física matemática poderia torná-la prova contra o erro. Portanto, acreditava que essa era a única luz que o intelecto humano poderia seguir com segurança. Isso significava que os métodos característicos daquela ciência precisavam, de alguma forma, se estender para abarcar todos os outros temas além da física. Um dia, ela uniria a totalidade do conhecimento em uma Teoria do Tudo, um sistema racional unificado e solidamente equilibrado sobre uma base única.
Assim, desde o início, a noção do Iluminismo em relação à ciência física foi uma noção imperialista. Desde seu surgimento, a ideia dessa ciência esteve associada a duas afirmações estranhamente ambiciosas: a infalibilidade e a unidade formal da totalidade do pensamento. Sabemos agora que essas duas formidáveis ambições não podem se realizar e que nem há necessidade de que sejam. A racionalidade não exige que sejamos infalíveis, nem que tenhamos todo o nosso conhecimento rigorosamente organizado com base no modelo da matemática. Porém, ainda somos perseguidos pela noção de que isso é necessário.
A despeito de seu próprio interesse pela consciência, Descartes colocou a física em uma posição que mais ou menos a obrigou a reivindicar um monopólio intelectual sobre o todo do conhecimento. Esse arranjo exigiu uma espécie de materialismo que, no fim das contas, deixaria a mente sem qualquer espaço aparente no universo. Filósofos posteriores perceberam isso com bastante clareza, mas a maioria deles estava tão convencida quanto Descartes de que precisavam de um sistema unificado e abrangente. Assim, em vez de tentar transpor o estranho vácuo que ele havia colocado entre mente e matéria, os idealistas e materialistas reagiram travando batalhas para decidir qual dessas duas superpotências deveria controlar todo o sistema.
Até os dias atuais convivemos com esse conflito. Por um lado, o idealismo, embora não seja agora muito mencionado, ainda funciona como um pano de fundo obscuro para muitas doutrinas “pós-modernas” e céticas, como, por exemplo, o construtivismo. Por outro lado, os materialistas dogmáticos ainda veem esse feudo metafísico como uma questão viva, uma batalha que precisa ser vencida. Precisamos dar um passo para trás e perguntar o que, na verdade, gera essa desarmonia. O que, de fato, surpreende em relação aos contestantes é, sem dúvida, o que eles têm em comum. Ambos ainda estão convencidos de que tal sistema de pensamento abrangente é necessário e possível. Eles não acreditam que possamos ser racionais sem ele.
*Trecho extraído das páginas 62 a 64 - Capítulo: O pensamento possui muitas formas