sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015
Recursos da Esperança apresenta o período mais intenso de produção de Raymond Williams, reunindo palestras e textos veiculados entre as décadas de 1950 e 1980. Dividida em sete partes, a obra apresenta as preocupações fundamentais do intelectual britânico, sempre marcadas pelo vínculo inquebrantável entre cultura e política. Articulando materialismo cultural e crítica social, Williams discute aqui temas variados, como comunidade e comunicações; arte e engajamento; socialismo e ecologia; o campo e a cidade; desarmamento nuclear. A obra reúne também alguns de seus ensaios políticos mais conhecidos, em que o autor empreende uma avaliação minuciosa dos princípios fundamentais de uma democracia socialista. A obra chega às livrarias em março. Confira, a seguir, trecho inédito:
Você é marxista, não é? (1975)*
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Williams: Marx não era marxista |
Você é marxista, não é? Essa pergunta seria difícil, mas não exageradamente difícil, de responder, se por acaso houvesse alguma vez sido feita. Mas, em minha experiência, em vez de uma pergunta, acontece algo muito diferente. Há uma espécie de rotulagem banalizada com a palavra “marxista” que se tornou paulatinamente comum durante os anos 1960 e agora é tida como natural. Acho, examinando minha própria experiência, que fui descrito como marxista aqui e ali em todos os tipos de contexto e com todos os tipos de implicação. Uma vez, consultei sobre mim mesmo na Anatomia da Grã Bretanha e vi-me descrito como “o professor marxista de Comunicações” e pensei: “Bem, não sou professor, não leciono Comunicações; não sei exatamente se o outro termo da descrição seria mais ou menos exato do que os outros”. Em seguida, combino em alguma medida tudo o que se entende na imprensa ortodoxa como extrema-esquerda, atualmente composta de organizações muito diferentes e de certo modo concorrentes. Aí, uma tática de discussão muito comum é dizer que alguém “não é marxista”, à semelhança da maneira banalizada que é utilizada pelo outro lado. Ora, há uma expressão que se tornou muito corriqueira (quase tão corriqueira quanto a famosa expressão do entreguerras “não foi por acaso que...”): a declaração incondicional de que “essa posição não tem nada a ver com o marxismo”. Nas organizações socialistas militantes, nas organizações socialistas revolucionárias, escuta-se esse tipo de argumento o tempo todo. As pessoas o afirmam umas às outras, a respeito de posições que, vistas do exterior, receberiam o mesmo rótulo incondicional de “marxista”.
Ora, já foi muito comum que a posição política e a perspectiva intelectual que eu em geral defendi fossem chamadas de “comunistas”, com aproximadamente a mesma banalidade. Qualquer um poderia ser considerado comunista, tivesse ou não uma carta de filiação partidária de membro do Partido Comunista ou de alguma das organizações comunistas rivais. Houve um espectro que foi descrito como comunista. Mas parece que foi substituído por “marxista”, como palavra genérica absolutamente banal. Suponho que a mudança, em grande parte, seja um reconhecimento do fato de que o movimento comunista e socialista mundial se tornou cada vez mais intensamente dividido, de que há centros rivais de ortodoxia comunista e marxista, dos quais a oposição entre a União Soviética e a República Popular da China é apenas a mais óbvia, e de que se reconhece então que é possível defender posições muito diferentes e mesmo alternativas na esquerda revolucionária socialista. Mas penso também que seja um modo de acomodação acadêmica. Nos últimos dez ou quinze anos, chegou às universidades algum conhecimento da posição marxista, e julga-se então que marxista seja uma palavra mais polida do que comunista, que poderia nos levar de volta aos dias da Guerra Fria. Porém, eu geralmente prefiro, na descrição de alguma posição particular, que alguém ainda seja chamado de comunista ou socialista revolucionário em vez de simplesmente marxista, com todas as dificuldades que me parece causar essa descrição específica. Quero discutir algumas dessas dificuldades, mas gostaria de indicar inicialmente algumas razões para essa preferência.
Pois devo dizer que, quando observo a evolução do pensamento socialista, quando observo como vários períodos muito criativos do pensamento socialista dependeram de toda a experiência da classe trabalhadora e dos movimentos de liberação democrática e nacional, além disso, quando observo todo o equilíbrio desses pensamentos e ações, e de fato todo o equilíbrio do que conheço como marxismo, parece-me errado, de certa forma fundamentalmente errado, reduzir toda uma tradição, ou toda uma ênfase dentro da tradição, ao nome da obra de um único pensador, ainda que tenha sido excepcional. Quero deixar claro, ao dizer isso, que Marx é para mim, assim como para muitos outros, incomparavelmente o maior pensador da tradição socialista; que sua obra ainda me parece, em muitas partes, completamente viva; e que, nesse sentido, nada seria uma honra excessiva para ele. Entretanto, particularizar uma tradição militante, da qual participaram milhões de homens, ou uma tradição intelectual, da qual participaram milhares de homens, a um único nome tem uma ênfase contrária ao que eu penso ser seu verdadeiro espírito. Além do mais, a transição de Marx ao marxismo é, por si mesma, uma questão de história muito complexa, e temos de recordar sempre da observação do próprio Marx de que ele não era um marxista.
*Trecho extraído das páginas 97 a 99.