quarta-feira, 6 de novembro de 2013
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Murdoch: "O que está em jogo é a liberação da moraliade" |

Leia abaixo trecho inédito de A soberania do bem, da escritora e filósofa irlandesa Iris Murdoch (1919-1999) que chega no fim de novembro às livrarias:
“Ainda é possível discutir se não se pode encontrar algum sentido em “estar errado sobre uma aparência”. Sem dúvida existe uma margem para debate aqui, mas esse debate nunca se tornou dos mais radicais. Permaneceu dentro dos termos gerais da revolução; e, embora seja impossível negar a importância dessa revolução, até o momento ela tem sido, com efeito, uma continuação de Hume por outros meios. (A obra de J. L. Austin, por exemplo, é um exorcismo detalhado e brilhante da ideia da impressão dos sentidos. Mas, ao substituir por um mundo impessoal da linguagem o velho mundo impessoal dos átomos de Hume e Russell, de certa maneira ele “salva” o último.) O que o filósofo está tentando caracterizar, na verdade justificar, ainda é a ideia de um mundo impessoal dos fatos: o rígido mundo objetivo para fora do qual a vontade salta a uma posição de isolamento. O que define e constitui fato foi deslocado de um lugar a outro, mas a ideia radical de “fato” continua a mesma. A lógica (as regras impessoais) obriga aqui a ciência a um modelo filosófico.
O que causa dificuldades a esse modelo é a concepção de pessoas ou indivíduos, uma concepção inseparável da moralidade. Todo o vocabulário, tão profundamente familiar para nós, da “aparência” e da “realidade”, tal como usado pelos empiristas britânicos ou pelo empirismo moderno, é cru e bruto quando aplicado ao indivíduo humano. Considere-se, por exemplo, o caso de um homem tentando determinar em privado se o que ele “sente” é arrependimento ou não. É claro que essa investigação está sujeita a algumas regras públicas, do contrário não seria essa investigação: e poderia haver dúvida ou disputa se é ou não essa investigação. Mas, ignorando esse ponto, a atividade em questão continuará sendo uma atividade muito pessoal sobre a qual o prêmio do “mundo impessoal da linguagem” será o menos problemático; ou, então, é uma atividade que põe em questão a existência desse mundo impessoal. Aqui um indivíduo está fazendo uso pessoal especializado de um conceito. É claro que de início é de seu ambiente que ele extrai o conceito; mas o retira para sua privacidade. Conceitos desse tipo se prestam a esses usos; e o uso que se faz deles é em parte uma função da história da filosofia moderna, abominam a história, cada um à sua maneira, e abominam a noção particular de privacidade que a história implica. Certa concepção de lógica e certa concepção de ciência também abominam a história. Mas, uma vez que o indivíduo histórico é “permitido”, uma série de coisas têm que ser ditas diferentemente.
A ideia de “realidade objetiva”, por exemplo, sofre importantes modificações quando deve ser entendida não em sua relação com “o mundo descrito pela ciência”, mas em sua relação com o progresso da vida de uma pessoa. A “reavaliação” e a “redefinição”, que estão entre as principais características de uma personalidade viva, muitas vezes sugerem e demandam um procedimento de verificação que é função de uma história individual. O arrependimento pode significar algo diferente para um indivíduo em momentos diversos de sua vida, o que significa é parte de sua vida, não podendo ser compreendido fora desse contexto.
Existe, é claro, uma “ciência” preocupada especialmente com a história do indivíduo: a psicanálise. E, determinado a todo custo a não se afastar de uma concepção científica do “objetivo”, é à que Hampshire acaba apelando: de maneira muito apropriada ele permite a entrada do indivíduo histórico, mas, com isso, pretende mantê-lo sob controle. Hampshire identifica um fundo impessoal no procedimento de verificação do indivíduo com a ajuda da noção de uma análise ideal. O analista é visto como alguém que está “lá”, como o observador competente definitivo fazendo o papel do olho de Deus. Hampshire permite que seja possível, em teoria, embora não na prática, “abordar explicações completas de inclinação e comportamento em qualquer caso individual por meio de uma análise infinita”. Mas por que um psicanalista não especificado seria a medida de todas as coisas?
A psicanálise é uma ciência pouco precisa e embrionária, e, mesmo que não fosse, não conheço nenhum argumento que mostre que temos que tratar seus conceitos como fundamentais. A noção de “análise ideal” é enganosa. Não há nenhuma série cuja extensão poderia conduzir a tal ideal. Essa é uma questão moral; e o que está em jogo aqui é a liberação da moralidade – e da filosofia como estudo da natureza humana – dos domínios da ciência; ou melhor, dos domínios de ideias inexatas de ciência que assombram os filósofos e outros pensadores.
Pela falta, até muito recentemente, de qualquer distinção clara entre ciência e filosofia, essa questão nunca foi apresentada de forma tão vívida antes. A filosofia desempenhou no passado o papel de ciência em parte porque era pensada como ciência. O existencialismo, tanto em sua versão continental quanto em sua versão anglo-saxônica, é uma tentativa de resolver o problema sem encará-lo: resolver atribuindo ao indivíduo uma liberdade solitária e vazia, uma liberdade, se ele quiser, de “ir contra os fatos”. O que retrata é, na verdade, a terrível solidão do indivíduo abandonado em uma ilha minúscula no meio do mar dos fatos científicos, a moralidade escapando da ciência apenas por um salto selvagem da vontade. Mas nossa situação não é assim.”