No prelo

Notícia
Notícias
segunda-feira, 7 de abril de 2014

O outro Lobato

Lobato, ao levantar-se a bandeira do pró-saneamento: "O caipira não é assim.  'Está' assim"

A Editora Unesp lança, dia 15, Monteiro Lobato, livro a livro - Obra adulta. O livro apresenta o lado menos conhecido do escritor consagrado pela saga O Sítio do Pica-pau Amarelo.  Examina a história de todos os seus 28 livros dirigidos ao público adulto, por meio de ensaios que analisam e interpretam o pensamento social, político e estético do irreverente e irônico autor de Urupês, Cidades mortas, O escândalo do petróleo. E sugere pontos para reflexão: por que Jeca Tatu ressurge de tempos em tempos, com variadas roupagens, na produção cultural do país? Por que Urupês (1918) representou um marco na literatura nacional? De que modo o editor Lobato revela-se nos livros do escritor Lobato? Questões como estas pululam na obra, organizada por Marisa Lajolo. Em 2008 ela organizou também, com João Luis Ceccantini, Monteiro Lobato livro a livro - obra infantil (Editora Unesp), premiada com o Jabuti (melhor livro do ano).  Confira um trecho do lançamento:

"Em 18 de março de 1918, nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, Monteiro Lobato, então colaborador assíduo do periódico, iniciava uma série de 14 artigos sobre os problemas de saneamento no Brasil, com o texto “A Acção de Oswaldo Cruz”. Publicados de março a junho de 1918 nas páginas do Estadão, o conjunto de artigos foi reunido em livro, no mesmo ano, por iniciativa da Liga Pró-Saneamento e da Sociedade Eugênica de São Paulo, com o titulo Problema vital.

O primeiro artigo critica o “mundo da Lua” em que sossegadamente vive o brasileiro, acreditando-se o povo mais inteligente e rico de quantos habitam o planeta. Ridicularizando esses falsos ditos patrióticos, tomados como axiomas pela nação, Lobato apresenta a verdadeira face do país: riqueza, tem-na o Brasil em “estado bruto”, não a transformou em “moeda sonante”, que e o que vale frente as demais nações; inteligência, mede-se pelos “efeitos resultantes”, e nada criara o brasileiro para comprovar a “maravilha” de seu cérebro. “[…] sempre satelitante, qual lua morta, em torno dos movimentos europeus”, o brasileiro “copia-lhe com servilismo a letra sem nunca assimilar o espírito”. (Lobato, 1951a, p.225.)

O Brasil peca por não se conhecer, denuncia Lobato, e observa que o processo de autoconhecimento da nação apenas se iniciou pela atividade de Oswaldo Cruz (1872-1917), cujo domínio sobre as áreas da microbiologia e os princípios da higiene, aplicados a realidade do país, permitira revelar o verdadeiro estado físico deste: grande parcela da população enferma, vítima das inúmeras endemias que assolavam o território.

Já se fazem presentes, neste primeiro texto, as diretrizes que irão nortear a discussão desenvolvida por Lobato nos demais artigos: o debate patriotismo versus pseudopatriotismo; a ação benéfica da ciência, cujo desenvolvimento possibilitou descobrir as endemias da população brasileira; a defesa do que o autor considera a única solução para os males sociais e econômicos do país – o saneamento.

Aborda também o trabalho pioneiro que possivelmente lhe despertou o interesse pelo assunto – o livro de Belisário Pena, O saneamento do Brasil (1918), obra cuja primeira parte foi inicialmente dada a imprensa através de artigos publicados no Correio da Manhã (RJ), entre novembro de 1916 e janeiro de 1917, sob o titulo “Saneamento dos Sertões”.

Em tom panfletário (muito próximo, alias, do próprio tom utilizado por Lobato em seus artigos), Belisário Pena denuncia o estado de insalubridade da população sertaneja, situação que o cientista pode observar de perto nas viagens realizadas pelo interior da Bahia, Pernambuco, Piauí e Alagoas, em companhia do também medico e pesquisador, Artur Neiva.

A jornada dos cientistas integra-se às expedições promovidas pelo Instituto Oswaldo Cruz ao interior do país, entre 1912 e 1917, com o intuito de inventariar o quadro clinico da população. Belisário Pena compara o cenário dos sertões aos círculos infernais de Dante: uma população combalida pela malaria, a ancilostomose, a leishmaniose, a sífilis, a lepra, a tripanossomíase ou doença de Chagas (descoberta em 1909 pelo também cientista do Instituto Oswaldo Cruz, Carlos Chagas), dentre outras doenças.

A obra de Pena investe-se de um aspecto revelador: expõe detalhadamente as moléstias que vitimam os sertões e denuncia o abandono desta população pelos governantes, os quais nada fazem para impedir que as doenças se alastrem e tampouco buscam restaurar a saúde dos infectados. O cientista faz severa critica ao regime republicano (em tom visivelmente monarquista), e assinala que os males econômicos da nação advêm de sua precária condição sanitária, responsável pela improdutividade dos trabalhadores:

A doença gera a tristeza, o desanimo, a miséria e o atrazo.
Nao ha um so paiz culto e adiantado que nao deva á hygiene o seu progresso e a sua força.
Quando se compenetrarão dessa verdade os dirigentes do Brasil?
Quando se convencerão de que sem a saúde, sem a hygiene, portanto, nao conseguirão dar solução a nenhum dos grandes problemas brasileiros, a começar pelo da produção? (Pena, 1923, p.278.)

Tal livro serviu como patamar para a fundação, pelo próprio Pena, da Liga Pró-Saneamento de São Paulo (1918), sendo ambas as iniciativas as primeiras ações formais de um movimento a favor do saneamento da nação, que agrupou médicos, cientistas, intelectuais e políticos, entre 1912 e 1920, atordoados pela denuncia dos higienistas.

A efervescência em torno da questão do saneamento nao foi, no entanto, evento isolado no período da Primeira Republica. Havia por parte da intelectualidade brasileira uma preocupação em “diagnosticar” e propor soluções para os problemas que impediam o Brasil de se igualar aos países que encabeçavam a civilização ocidental. Paralelamente, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) avivou o espírito nacionalista, direcionando esforços no sentido de se conhecer o território brasileiro e suas complexidades.

As expedições científicas coordenadas por Oswaldo Cruz, bem como as realizadas sob o comando do Marechal Candido Rondon (1865-1956) – dentre as quais a Comissão Rondon a Mato Grosso e Amazonas (1906-1910) e a expedição Roosevelt-Rondon aos vales dos rios Paraguai e Amazonas (1913-1914) – podem ser lidas como parte do empenho em mapear e compreender a nação brasileira e, no que diz respeito ao trabalho dos higienistas, também diagnosticar os males das regiões mais afastadas da capital. [...]

A importância da questão do saneamento para o período pode ser compreendida de modo mais integral se forem consideradas as discussões raciais que se processavam entre o fim do século XIX e inicio do século XX.

Nação germinada na miscigenação racial, o Brasil era tomado como exemplar negativo tanto pelas teorias poligenistas, que assinalavam as miscigenações raciais como uma ameaça a humanidade, considerando o híbrido como inferior as raças que lhe deram origem, quanto pelos deterministas, como Gustave Le Bon (1841-1931), muito lido pela intelectualidade brasileira do inicio do século XX, que condenava a mestiçagem por desrespeitar o legado cultural intrínseco a cada raça (Luca, 1999, p.133-56).

Sob o ponto de vista de tais teorias, o panorama do Brasil era o mais pessimista possível – o pais estaria condenado ao fracasso pela inaptidão racial de sua população, mestiça em sua grande maioria.

Nesse quadro, alguns intelectuais, como Nina Rodrigues (1862-1906), Euclides da Cunha (1866-1909), Silvio Romero (1851-1914), Oliveira Vianna (1883-1951), viam como possibilidade de “restauração” da nação brasileira cruzamentos raciais orientados, privilegiando a chamada “raça ariana” – considerada superior as demais –, de modo a corrigir, a longo prazo, as “características negativas” da população brasileira, surgidas da mistura caótica de raças. 

As descobertas da microbiologia e o discurso higienista, que propunha ação profilática até então desconsiderada pela medicina, deram novos rumos as discussões raciais que alvoroçavam os intelectuais do país. A indolência, vista antes como característica de uma raça mestiça degenerada, passa a ser analisada como sintomática das endemias que flagelavam a população, sobretudo, a rural. A bandeira do saneamento e levantada, sublinhando-se as conquistas econômicas que adviriam de uma população revivificada pela medicina higiênica.

Neste contexto, evidencia-se o posicionamento do caboclo como ponto central das discussões que ocorriam no período, o que explica, em parte, a repercussão que os artigos “Velha Praga” e “Urupês”, ambos publicados n’O Estado de S. Paulo em 1914, obtiveram no âmbito cultural paulistano. Lobato “colocava o dedo na ferida” dos ufanistas brasileiros – a quem tanto iria criticar em seus artigos do Problema vital –, pintando o caboclo em cores rudes e trágicas, desvelando a verdade que o país insistia em manter silenciada, por ignorância ou oportunismo.

O caboclo, batizado de “Jeca Tatu” no segundo artigo, e apresentado como um “parasita da terra”, sobrevivendo daquilo que a natureza lhe oferece, alheio aos acontecimentos do país, vivendo pela lei do menor esforço, em seu preceito de que nada “paga a pena”, desapegado de tudo e pronto a mudar-se tão logo se torne escasso o alimento, ou seja, expulso por algum proprietário local (Lobato, 1951b, p.241-6).

É certo que o escritor, no momento em que concebe sua personagem, não parece solidário com o drama do caboclo nômade, doente e sem qualquer instrução nem adjutório que lhe permita superar sua precária situação. É sob o prisma do fazendeiro paulista, castigado pela seca e pelas queimadas, que Lobato traça as cores do inânime personagem.

Num meio cultural agitado ora pelas discussões de inferioridade racial do mestiço, ora pela pintura ufanista do caboclo, é compreensível que a personagem lobatiana causasse tanta celeuma.

E quando se levanta a bandeira em prol do saneamento, Jeca Tatu é tomado como arquétipo da população dos sertões e restaurar seu tônus vital se torna condição sine qua non para o crescimento econômico do país."

*Trecho do ensaio “Problema vital: a restauração do Brasil sob a ótica da medicina higienista”, de Raquel Afonso da Silva, págs. 59 a 66.