sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
Cortés e seu duplo - Pesquisa sobre uma mistificação
Presumido autor da Historia verdadera de la conquista de la Nueva España (História verídica da conquista da Nova Espanha), obra central sobre a expansão ultramarina espanhola publicado em 1632, Bernal Díaz del Castillo entrou para o panteão da literatura hispânica, entre Cid e Dom Quixote. Mas tal autoria perde credibilidade à medida que os estudiosos desvendam sua biografia misteriosa. Em Cortés e seu duplo – Pesquisa sobre uma mistificação, Christian Duverger tenta demonstrar que Díaz del Castillo seria na verdade uma criação do conquistador espanhol Hernán Cortés, protagonista e verdadeiro do épico. Confira trecho inédito da obra, que será lançada até o fim do mês:
Entre lacunas e mentiras: uma vida usurpada?*
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Hernán Cortés: verdadeiro autor dos relatos de viagem? |
No dia 20 de maio de 1520, no porto de La Corunha, Carlo I da Espanha embarca para a Alemanha. Parte para ser coroado imperador germânico em Aix-la-Chapelle. Para financiar sua ruinosa campanha eleitoral, acaba de conseguir no voto um imposto prodigioso que desencadeia imediatamente rebeliões por toda parte na Espanha. A revolta dos comuneros de Castela explode em junho. É uma insurreição espontânea, sem dúvida inflamada pela questão fiscal, mas também é um movimento de rejeição profunda da Espanha a um monarca estrangeiro, educado na cidade de Gande, arrodeado por conselheiros flamengos e que não fala uma palavra de castelhano. Nutre também a revolta um substrato antimonárquico: as comunidades de Castela, orgulhosas de seus fueros, sonham com um regime republicano, à imagem das cidades italianas. Para tentar conter a situação, as tropas de Carlos I organizam uma repressão feroz. A primeira cidade insurgente a pagar pelo sacrifício dessa guerra civil é Medina del Campo, na Castela Velha, que é posta a sangue e fogo. A destruição pelas chamas dessa cidade mártir irá manchar duradouramente a imagem do soberano espanhol.
Em Medina del Campo, então potente metrópole econômica, tudo pegará fogo: a prefeitura, as igrejas, os armazéns dos mercadores, as casas de pobres e de burgueses, como também todos os arquivos.
Ora, eis como nosso autor declina sua identidade no início de seu relatório:
Bernal Díaz del Castillo, residente et vereador da muito leal cidade de Santiago de Guatemala, um dos primeiros a terem descoberto e conquistado a Nova Espanha e suas províncias e as terras aqui chamadas Cabo de Honduras e Higueras, natural da muito nobre e gloriosa cidade de Medina del Campo, filho de Francisco Díaz del Castillo, igualmente conhecido pelo nome de El Galán. Que ele repouse em paz!
Ele parece nos indicar sua cidade de origem ao mesmo tempo que oculta seu ano de nascimento; com isso, dota-se de uma ascendência honorável ao apresentar seu pai como um notável. Talvez seja verdade, mas isso é impossível de se provar. Assim, não teremos nenhum traço da filiação de Bernal, nenhuma pista de seu nascimento em Medina del Campo. Mas não seria esse seu desejo? Se tivesse tido a intenção de dissimular a verdade sobre seu nascimento, Medina, com sua memória que se desfez em fumaça, lhe oferecia uma escolha ideal. Há um índice que pode apoiar a tese de uma construção tardia: essa referência a Medina del Campo não figura na versão da História verídica editada em 1632. Esta apresenta o capítulo introdutório reduzido, desprovido de indicações pessoais. Encontramos, no decorrer das páginas, apenas uma única alusão ao que poderia ser sua terra natal, quando Díaz compara o mercado de Tlatelolco com as feiras que ocorrem “em meu país que é Medina del Campo”. Outro detalhe reforça a impressão de mentira: seu pai não se chama de modo algum, como diz, Francisco Díaz del Castillo. Até 1552, Bernal é simplesmente Díaz, às vezes Díez, mas nunca “del Castillo”.
O autor da História verídica fornece alguns elementos sobre sua idade. Mas ele o faz de tal maneira que todos os historiadores arrancaram os cabelos para fazer coincidir os dizeres de Bernal com os elementos sobre seu estado civil, retirados em especial das probanzas em que ele figura como testemunha. No prólogo do Manuscrito de Guatemala, Díaz escreve: “Estou velho; tenho mais de 84 anos, estou cego e surdo e, por ventura, não possuo outras riquezas para deixar a meus filhos e descendentes senão esse verídico e notável relatório”. Ao cotejarmos tal declaração com os outros elementos que figuram em seus escritos, seríamos levados a pensar que ele nasceu em 1484. De fato, no prólogo da edição de 1632, Díaz data seu ponto final com bastante precisão: 26 de fevereiro de 1568. Por três vezes, no corpo do texto, confirma que essa data marca de fato a redação de sua obra.6 Ele estaria então, segundo declara, com 84 anos em 1568. O problema é que o próprio Díaz, no capítulo introdutório do Manuscrito de Guatemala, fornece outra versão, formulada bastante confusamente:
Deus concedeu-me a graça de me proteger de todos os perigos de morte, tanto durante a penosa aventura da descoberta, quanto nas mais sangrentas guerras mexicanas. E louvo a Deus que me seja permitido hoje narrar o que aconteceu nessas provações. E gostaria também que os leitores curiosos levassem em conta outro elemento: tendo eu na época 24 anos, na ilha de Cuba, o governador de então, chamado Diego Velázquez, parente meu, prometeu dar-me índios assim que houvesse uma vacância e prezou a Deus que ele não cumprisse o prometido.
*Trecho extraído das páginas 43 a 47.