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sexta-feira, 9 de maio de 2014

O mundo de Parmênides

Popper: Xenófanes chegou perto de antecipar as noções do Iluminismo













Coletânea de ensaios de Karl Popper, este livro, que a Editora Unesp lança até junho, enfoca o pensamento pré-socrático e dos filósofos gregos, sem sem deixar de lado a questão geral da filosofia do conhecimento e a teoria da ciência, que permeiam a obra do autor. Confira trecho inédito: 

Fundador do Iluminismo grego *

"As vivas palavras que escolhi como epígrafe vêm da pena de Harold F. Cherniss, um eminente historiador da filosofia grega (mas alguém que, temo eu, jamais vai “tornar-se um personagem da história da [...] filosofia”, mesmo que “por engano”). As linhas que citei obedecem a um padrão, a uma tradição que permite a todos ofenderem Xenófanes impunemente. 
As raízes desse padrão podem ser discernidas numa chacota magistral, de autoria do grande Heráclito, jovem contemporâneo de Xenófanes: 
Saber tudo nada ajuda a conhecer; não ajudou nem Hesíodo, nem Pitágoras, nem Xenófanes, nem Hecateu a conhecerem (DK B40).
Embora, sem dúvida, a intenção dessas palavras fosse a chacota, sem querer, elas prestaram homenagem a Xenófanes, tornando-o membro de uma seleta companhia. Além disso, Heráclito reconhece que ele sabia muito – até demais, embora não as coisas certas. As coisas certas eram, provavelmente, saber que o dia e a noite (e da mesma forma todos os opostos) eram um só; porque o dia não pode existir sem a noite e vice-versa.
A chacota de Heráclito, porém, diz-nos ainda mais: acho que pode ser usada como um argumento – fraco, sem dúvida – de que Heráclito não via Pitágoras como um simples adivinho, um xamã, já que o coloca ao lado de Xenófanes. Pois de todos os filósofos da época que acreditavam na existência de deuses, Xenófanes era, segundo Cícero, “o único que repudiava energicamente a prática da adivinhação do futuro”. Sem dúvida, isso faz de Xenófanes também um forte opositor ao xamanismo.
Creio que foi a liderança exercida por Xenófanes no Iluminismo antigo que explica o padrão anteriormente mencionado: a velha tradição de rebaixá-lo. Todos nós conhecemos muito bem o lugar-comum de que não é possível ser um verdadeiro filósofo se não se despreza o Iluminismo por sua total falta de profundidade, em contraste com a essência de toda real filosofia. Pois quando se é filósofo, é preciso ser profundo. Deve-se tentar alcançar a “elevada profundidade” (“die erhabene Tiefe”) que Hegel atribui a si mesmo. (Esta, naturalmente, é uma pura metáfora que resulta num nivelamento, como logo percebeu Schopenhauer. Mas o que Hegel realmente quis dizer é que ele se elevava acima de todos os demais por causa da abissal profundidade do seu pensamento.) Esse “conhecimento de si mesmo” faz com que alguns filósofos estejam mais em voga do que outros. E uma vez que os seguidores do Iluminismo não podem alcançar tal conhecimento, só “por engano” podem entrar na história da filosofia.
Acho que Xenófanes chegou muito perto de antecipar as noções do Iluminismo europeu, mas tais ideias nunca mereceram o respeito dos intelectuais, que praticavam o abuso delas para ampliar seu próprio poder – sobretudo o poder sacerdotal ou (mais tarde) o poder político. Esse abuso das ideias sempre esteve ligado à tentativa de impressionar as pessoas pela profundidade do pensamento – por sua origem transcendentalmente (ou seja, não empiricamente) inspirada – até mesmo divina –, por sua significação profética.
Alguma coisa disso, mas muito pouco, podemos encontrar até mesmo nos grandes pré-socráticos. Quando Heráclito era chamado de “o Obscuro”, era, provavelmente, porque suas formulações brilhantes tinham um sabor profético. Na verdade, porém, não havia muito disso nos pré-socráticos, e se pode muito bem dizer que o próprio Heráclito pertenceu ao Iluminismo (cf., por exemplo, DK B43, 44, 55, mas também B47-54), embora, sem dúvida, tenha sido sua “obscuridade” que o salvou da acusação principal: nunca foi acusado de superficialidade, a acusação habitual contra Xenófanes.
Trata-se de uma acusação bastante temida por muitos que são superficiais e é, portanto, amplamente usada por eles, na esperança de se distanciarem de sua própria superficialidade – dirigindo a acusação contra outros – bem como, é claro, também por meio do uso de linguagem incompreensível e impressionante. “Não entendi nada, mas sei que isso é filosofia” era a convicção de um jovem físico muito talentoso, depois de ouvir Heidegger falar. (Reconheço: se isso é filosofia, Xenófanes entrou na história da filosofia por engano.)
Note-se que não estou sugerindo que todos os que menosprezam Xenófanes sejam inimigos do Iluminismo. Todos os grandes fundadores da Escola Milésia pertenciam, cada um a sua maneira, a uma fase do Iluminismo, inclusive Heráclito. E a má-compreensão da cosmologia de Xenófanes – analisada a seguir na Seção 3 – e o ataque contra ele provocado por essas más-compreensões, pouco têm que ver com tendências anti-iluministas; devem-se simplesmente ao fato de que ele parecia aos críticos completamente palerma. Mas da defesa de Xenófanes feita por Galeno fica claro que esses críticos pertenciam, de fato, à tradição contrária a Xenófanes e anti-iluminista.
Sugiro que foi uma das maiores façanhas de Xenófanes o fato de ter antecipado e representado energicamente todas as principais ideias do Iluminismo europeu. Entre elas, as ideias de lutar pela verdade e contra as trevas; falar e escrever de modo lúcido e modesto; praticar a ironia e, sobretudo, a ironia contra si mesmo; evitar a pose de pensador profundo; examinar a sociedade com olhos críticos e contemplar o mundo com maravilha e com contagiante curiosidade.

*Trecho extraído das págs. 36 a 39