quinta-feira, 10 de abril de 2014
O leitor em Tempos difíceis*
 |
Williams: introdução da escrita se relaciona a formas de relação social |

Em A produção social da escrita, reunião de 15 textos, Raymond Williams, um dos principais ícones da esquerda britânica, examina as diversas formas de escrita na língua inglesa em diferentes tempos, focalizando autores como Charles Dickens e David Hume. Ele escreve: “A introdução da escrita e todos os estágios subsequentes de seu desenvolvimento são intrinsecamente novas formas de relação social”. Para Williams, ainda, o fato da alfabetização da população inglesa ter acontecido tardiamente em relação à produção literária, certamente influenciou o que foi escrito e o que foi lido no país. O livro chega às livrarias em maio.
“O que podemos dizer de um romance poderoso e persuasivo que, ao fazer soar sua “tônica”, faz uma afirmação geral que é desmentida por seu próprio modo de caracterização e narração? A afirmação geral, em Tempos difíceis, é feita na descrição memorável de Coketown, no capítulo intitulado “A tônica” (I, V):
Ela tinha muitas ruas largas, todas iguais umas às outras, e muitas ruas estreitas ainda mais parecidas umas às outras, habitadas por pessoas igualmente parecidas umas às outras, que saíam e entravam todas na mesma hora, com o mesmo som sobre o mesmo pavimento, para realizar o mesmo trabalho, e para quem todos os dias eram iguais ao ontem e ao amanhã, e todos os anos eram a contraparte do anterior e do seguinte.
Sublinhei as frases que são desmentidas mais adiante. O que é descrito aqui é a uniformidade e a monotonia do novo tipo de cidade industrial do século XIX e do novo processo de trabalho sistemático que ela encarnava. O delineamento persiste, como o tema principal do romance. Mas os habitantes de Coketown, “pessoas igualmente parecidas umas às outras”: Stephen Blackpool e seus colegas de trabalho, com os quais ele não pode concordar em se filiar ao sindicato, a esposa alcoólatra de Stephen Blackpool e a dedicada Rachael, Louisa Gradgrind, Tom Gradgrind e Bitzer, Thomas Gradgrind e Josiah Bounderby, ou os círculos externos de Harthouse e a senhora Sparsit, Slackbridge, a senhora Pegler, Sissy Jupe e o senhor Sleary, são “pessoas igualmente parecidas umas às outras”? Como quase sempre acontece na ficção de Dickens, essas personagens se revelam muito diferentes umas das outras. Podemos dizer que as diversas personagens do círculo externo influenciam Coketown, ou são arrastadas para ela de outras esferas sociais. Mas as personagens que se encontram no sistema são igualmente diferentes umas das outras: tanto em termos de classe social, como mais amplamente entre Bounderby e Blackpool, mas também, e de maneira deliberada, no interior das classes, em que as diferenças de personalidade são mostradas como a origem, ou a origem parcial, de histórias pessoais e reações morais diferentes. De fato, a diferenciação explícita é um dos principais modos do romance.
Se a uniformidade indicada pela “tônica” é desmentida pela caracterização deliberadamente individualizante e contrastante, a monotonia e a continuidade repetitiva – “todos os anos eram a contraparte do anterior e do seguinte” – é também, e de igual maneira, deliberadamente desmentida pela narrativa real. O romance narra toda uma série de mudanças radicais na vida de cada personagem, e os relacionamentos no fim do romance são bastante diferentes daqueles no início. Dickens direciona a atenção do leitor para a fonte óbvia dessas transformações:
O tempo passava em Coketown como sua própria maquinaria; tanto metal moldado, tanto combustível consumido, tanta energia utilizada, tanto dinheiro feito. Menos inexorável do que o ferro, o aço e o bronze, porém, ele levou suas várias estações até para aquele deserto de fumaça e tijolos, e praticou a única oposição jamais praticada contra sua assustadora uniformidade. (I, XIV)
É o “tempo” como ciclo natural de estações, mas outro aspecto desse “tempo” é introduzido, o do crescimento humano: “O tempo [...] tornou o jovem Thomas trinta centímetros mais alto”. Tudo é comparado ao “tempo” imposto em Coketown: um sistema de produção regulado e mensurável. Mas há ainda outro “tempo” fundamental para a narrativa: o tempo como sequência e consequência – os estágios e os efeitos das ações pessoais; as interações, as pressões e os distúrbios complexos de uma história social ativa. A realidade do tempo nesse sentido – o tempo narrado – é decisiva no romance, e o último capítulo – as sequências e consequências posteriores – é caracteristicamente extrapolado em um “futuro possível”.
O que dizer, então, quando observamos um modo de caracterização específico e deliberado e um modo de narração também específico e deliberado que desmente o que foi oferecido tão deliberadamente como “tônica”? Poderíamos ficar tentados a inverter a pergunta. Esse tipo de caracterização individualizante e contrastante e esse tipo de narrativa sequencial e consequencial são tão comuns na ficção que seria mais fácil isolar a “tônica” como algo contraditório. Será que Dickens, uma vez que se lançou nessa apresentação espetacular de Coketown – “uma cidade de um vermelho e um negro artificiais, como o rosto pintado de um selvagem” –, foi levado pela força de sua retórica a essas afirmações falsas e generalizadoras sobre as pessoas e os anos? Essa poderia ser a resposta da crítica literária ortodoxa, que também poderia analisar, de um modo igualmente local, as tensões entre as imagens das “intermináveis serpentes de fumaça”, a “cabeça de um elefante em estado de loucura melancólica”, o “rosto pintado de um selvagem” e as descrições discursivas “um triunfo do fato” e “nada [...] salvo o que foi realizado com um trabalho rigoroso”. Essas são passagens, dentro de uma descrição generalizadora única, entre imagens permanentes do exótico e uma afirmação contínua da exclusão da “imaginação” pelo “fato”. Na realidade, não é fácil separar a afirmação de um sistema severamente limitado e uniforme das respostas do narrador a esse sistema nas imagens exóticas que fazem esse sistema “racional” parecer “selvagem”, mas que ainda são parte de sua apresentação física direta. Mas a crítica literária, anotando essas questões, compilando seus exemplos e avaliando seus efeitos por um critério imputado de “escrita bem-sucedida”, logo alcança seus limites, e no caso de Tempos difíceis isso acontece particularmente cedo. Pois parece nítido nessas questões e exemplos, e no caso mais amplo da contradição entre a “tônica” e a caracterização e a narrativa geral, que para encontrar as respostas temos de nos deslocar para um plano muito mais profundo e formativo.
É tentador chamar esse plano de “ideológico”, porque há, de fato, romances ideológicos, nos quais a ficção é orientada de modo mais ou menos coerente por uma visão sistemática subjacente dos homens e do mundo. E, a princípio, não há nenhum grande problema em chamar Tempos difíceis de romance ideológico. Ele oferece uma interpretação generalizante de um modo de vida particular em termos de valores deliberadamente contrastados. Ele privilegia a voz do narrador para orientar essa interpretação e, de fato, termina com uma alocução ideológica específica, que ultrapassa deliberadamente o texto. “Caro leitor! Depende de você e de mim se, em nossos dois campos de ação, coisas semelhantes ocorrerão ou não” (III, IX). Um desses “campos de ação” é nitidamente o do escritor compondo esse tipo de texto, com esse tipo de propósito. Não se trataria então de um caso de violação da integridade do texto com alguma consideração externa.
Contudo, logo se torna claro que “ideologia”, no sentido comum do termo – uma visão sistemática subjacente dos homens e do mundo –, é uma forma improvável de negociar um texto em que alguns problemas se definiram como contradições e tensões. É verdade que a “ideologia”, apesar de ser sempre sistemática, não precisa ser singular. De fato, é característico de algumas ideologias que sejam projetadas precisamente para reconciliar ou desconsiderar tensões e contradições reais e fixas. Contudo, quando são projetadas desse modo, elas são, ao menos em seus próprios termos, relativamente coerentes. O grande interesse de Tempos difíceis, para além de seus elementos ideológicos prontamente reconhecidos e deliberadamente oferecidos, é que ele não é coerente em um plano mais profundo, e boa parte de seu interesse – o interesse geral, mas também as relações específicas com muitos de seus leitores – resulta desse fato.
Em seu plano mais profundo e formativo, Tempos difíceis é composto a partir de duas posições ideológicas incompatíveis, tomadas de forma desigual tanto por Dickens quanto por muitos de seus leitores mais interessados. Em termos amplos, essas posições são: em primeiro lugar, o ambiente influencia e, em alguns casos, determina o caráter; em segundo lugar, alguns vícios e virtudes são originais e não só triunfam sobre o meio, como, em alguns casos, podem alterá-lo. Em suas formas extremas, essas posições são bastante distintas. No pensamento inglês, Godwin e Owen defenderam a primeira e muitos cristãos a segunda. Os problemas intelectuais de cada posição são difíceis, e não se trata de introduzir outra posição que as supere. Pois o que é imediatamente relevante para a ficção do século XIX é que cada posição ideológica corresponde a modos formativos e interpretativos potentes. A premissa das virtudes e vícios originais ou, de modo mais geral, de um caráter moral diferenciado e inerente é obviamente muito mais antiga na literatura; ela está profundamente ligada a sistemas diversos de pensamento religioso. A afirmação de que o meio pode determinar o caráter é mais conscientemente moderna e talvez não seja anterior, como modo ficcional na Inglaterra, a Godwin, Bage, Inchbald e Holcroft – os romancistas “jacobinos” da década de 1790. O “meio” é ainda essencialmente definido como instituições morais e a consequente educação moral. Não se trata ainda do “meio” no sentido do romance plenamente naturalista, em que um mundo inteiramente social, material e físico é visto como influente ou determinante. Os modos ficcionais que resultam dessas versões de “meio” são igualmente distintos. O modo mais recente é a ficção da educação moral: encarnações da formação do caráter, bom ou mal, pela natureza de um meio imediato (familiar ou educacional), e da reforma ou corrupção do caráter por mudanças deliberadas nesse ambiente. O modo naturalista, ao contrário, em seu desenvolvimento final, representa um conjunto de circunstâncias sociais, materiais e físicas que forma e deforma o caráter de maneiras específicas e, de fato, sistemáticas.[...]”
*Trecho do ensaio “O leitor em Tempos difíceis”, extraído das págs. 219 e 224