terça-feira, 10 de junho de 2014
Depois de 1945
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Gumbrecht, um dos maiores críticos literários vivos, estará nesta Bienal |

Hans Ulrich Gumbrecht analisa neste livro a cultura ocidental, em especial a europeia, que se desenvolveu a partir do pós-guerra. Para ele, a sensação de frustração com o que veio nos anos subsequentes não reflete a realidade. Ao contrário, diz, há uma pujança do pensamento e das manifestações culturais, esmaecidas, porém, pelas mazelas vivenciadas no mundo antes de 1945. O livro chega às livrarias até o fim de junho. Confira trecho inédito:
Sem saída e sem entrada*
O “couraçado de bolso” Graf Spee primeiro tocou a água em 1º de outubro de 1932 – não mais do que quatro meses antes de o Partido Nacional Socialista de Adolf Hitler subir oficialmente ao poder – e teve o seu batismo de navegação em 30 de junho de 1934. Seu nome homenageava o almirante Graf Maximilian von Spee, que morreu em 8 de dezembro de 1914, com dois de seus filhos, na primeira batalha das Ilhas Malvinas. Depois de cumprir funções de controle internacional ao largo da costa leste da Península Ibérica, durante a Guerra Civil Espanhola, o navio foi enviado em 26 de setembro de 1939 – quase ao mesmo tempo da eclosão da Segunda Guerra Mundial – como navio mercante para o Atlântico, onde afundou nove navios mercantes dos Aliados. A ameaça que representava, em parte, devia-se à tecnologia avançada que levava a bordo: o Graf Spee foi o primeiro navio de combate da Marinha alemã a ser equipado com radar Seetakt. No entanto, esse poder também deve ser creditado ao capitão Hans Langsdorff, veterano da Primeira Guerra Mundial, que assumiu o comando em 1o de novembro de 1938. Langsdorff respeitou com grande rigor as regras de guerra mercantil, poupando a vida dos trezentos e três marinheiros a bordo dos navios que afundou. (Mais tarde, nas neutras águas norueguesas, um destróier britânico libertou, à força, os prisioneiros do petroleiro alemão Altmark.) Muitos dos homens tinham Langsdorff em grande consideração; o capitão falava um inglês perfeito e ofereceu a alguns deles livros em inglês para ajudar a passar o tempo.
Oito grupos de caça – um total de vinte e cinco navios (principalmente britânicos) – foram mobilizados para encontrar o Graf Spee. Em 13 de dezembro de 1939 – era o auge do verão no hemisfério sul – a sétima dessas flotilhas avistou o couraçado ao largo da costa da Argentina e do Uruguai. No início da batalha que se seguiu, um projétil de oito polegadas penetrou duas de suas plataformas e causou danos sérios na área da chaminé. O Graf Spee foi forçado a rumar à doca para reparos no porto de Montevidéu (oficialmente um posto neutro, mas de fato pró-aliado). Nos termos da Convenção de Haia de 1907, o navio dispunha de 72 horas antes de zarpar. Mais de trinta tripulantes foram enterrados, com honras militares, no cemitério alemão de Montevidéu. Enquanto isso, Langsdorff recebia ordens do próprio Adolf Hitler para abrir caminho até Buenos Aires, usando a munição que lhe restava. O Graf Spee deixou o porto de Montevidéu às 18h15 de 17 de dezembro de 1939; três navios de guerra britânicos esperavam-no para escoltá-lo até águas internacionais. Assim que saiu do porto, foi afundado às 19h52, em água rasa – uma decisão que provavelmente salvou muitas vidas. Três dias depois, envolto na bandeira do império alemão (que era diferente da bandeira dos nazistas, com a suástica), Langsdorff suicidou-se. Numa jogada inteligente, os cerca de mil marinheiros do Graf Spee foram abandonados à deriva no Rio da Prata, onde foram resgatados por três embarcações de bandeira argentina, mas de propriedade de alemães locais. Alguns dos tripulantes feridos foram detidos em Montevidéu e, mais tarde, decidiram permanecer ali. Após o fim da guerra, em fevereiro de 1946, foi realizada uma operação para repatriar à força os mais de oitocentos alemães que ainda estavam em Buenos Aires. A essa altura, a maior parte preferiu ficar na América do Sul. Puderam fazê-lo graças à intervenção da Marinha argentina, que, no último momento, lhes garantiu os documentos de identidade necessários.
Após ser afundado, a maior parte da enorme estrutura do Graf Spee manteve-se à tona da água. Ao longo de muitos anos, foi progressivamente desaparecendo. Hoje em dia, apenas a parte superior do mastro pode ser vista, quase à superfície. Como o navio afundado representa um perigo para a navegação, em fevereiro de 2004 foi feita uma tentativa para resgatá-lo. Os trabalhos foram interrompidos por decreto presidencial do Uruguai em 2009. Junto com os descendentes dos tripulantes do Graf Spee que ainda vivem na Argentina e no Uruguai, o mastro do navio e as peças que foram erguidas desde o fundo do mar preservam – em estado de latência – um episódio do começo da Segunda Guerra Mundial que fascinou o mundo nos meados do século XX. Para ser mais preciso: alguns restos materiais do episódio ainda estão presentes e visíveis; no entanto, é pouco provável que consigamos reconhecê-los por conta própria. A história do Graf Spee diz respeito ao sentimento de claustrofobia, da incapacidade de deixar Montevidéu e o Rio da Prata. Além disso, também se relaciona à recusa do capitão Langsdorff de se juntar por completo aos militares sob controle nazista, bem como à falta de vontade dos antigos tripulantes de deixar o Rio da Prata. Durante a cerimônia fúnebre em Montevidéu, em 15 de dezembro, Langsdorff fez a saudação naval tradicional, enquanto os homens ao seu redor levantavam os braços na saudação a Hitler. Seja como for, nunca saberemos ao certo o que motivou a sua última ação como comandante naval.
*Trecho extraído das páginas 65 a 68