No prelo

Notícia
Notícias
segunda-feira, 11 de maio de 2015

Trajetórias das desigualdades
Como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos


Esta obra navega no debate sobre a desigualdade no Brasil e vai em direção contrária ao da especulação. Utilizando como fonte as seis edições dos Censos Demográficos produzidos pelo IBGE no período entre 1960 e 2010, os catorze ensaios reunidos no livro descrevem um panorama denso e complexo das trajetórias das desigualdades no período. Organizada por Marta Arretche, a obra divide-se em cinco eixos centrais – participação política; educação e renda; políticas públicas; demografia e mercado de trabalho –, e sistematizam a análise de um recorte da história brasileira bastante distinto econômica e politicamente. Confira a seguir trecho da obra, que chega às livrarias até o fim de maio. 

Educação e desigualdade no Brasil*

O Brasil é notório por sua alta desigualdade social e baixo desempenho em termos educacionais. No final do século XX, o país permanecia entre as nações com maior desigualdade de renda do mundo e mais baixos níveis de escolaridade média. Por exemplo, enquanto os nascidos em 1980 nos Estados Unidos tinham 14 anos de estudo em média, no Brasil essa coorte havia alcançado apenas 9 anos, nível atingido pela população norte-americana nascida em 1900. Em termos de desigualdade de renda, os 10% mais ricos no Brasil, no final do século passado, possuíam renda média setenta vezes superior àquela dos 10% mais pobres, muito acima de países com níveis de renda per capita similares.

É importante ressaltar que a desigualdade entre estratos sociais também resulta de fatores não diretamente ligados à educação, os quais incluem os diferenciais de salário por gênero, cor, entre ocupações ou ramos de atividade (Barros; Mendonça, 1995), englobando o diferencial salarial e a aposentadoria integral dada ao funcionalismo público (Hoffmann, 2009), ou ainda por conjunturas macroeconômicas que prejudicam mais intensamente certos grupos, como os períodos hiperinflacionários, em que os mais pobres não conseguem preservar o valor de sua renda real (Ferreira et al., 2006).

Durante grande parte do século XX, o foco das políticas públicas foi o “desenvolvimento econômico”, ainda que isso ferisse a justiça social (Kerstenetzky, 2008). A partir da década de 1980, a meta principal da política econômica foi estabilizar a economia, tendo em vista que a hiperinflação dificultava qualquer planejamento econômico. Com o Plano Real e a estabilização da inflação, a atenção voltou-se ao combate da pobreza e da desigualdade de renda (Neri, 2006). Nas últimas décadas, emergiu o consenso de “inaceitabilidade” da desigualdade, seja por suas consequências econômicas, seja pelo embasamento de justiça social (Barros; Henriques; Mendonça, 2000; Kerstenetzky, 2000). Nesse sentido, vários setores da sociedade identificaram a educação como prioritária para o combate à desigualdade (Reis, 2000).

Assim, mais recentemente, a redução da desigualdade de renda tem se tornado um dos focos das preocupações governamentais. O programa Bolsa Família, por exemplo, reorganizou e expandiu várias políticas de transferência de renda preexistentes, de forma a articular a transferência de renda às condicionalidades de saúde e educação (Soares et al., 2010). Em linha com a última geração de programas de transferência de renda, o objetivo do Bolsa Família é aliviar a pobreza, ao mesmo tempo que gera oportunidades de mobilidade social por meio do aumento da escolarização nas camadas mais desfavorecidas da população (Silveira Neto, 2010).

Entretanto, estudos recentes mostram que, apesar de relevantes, os programas de transferência de renda não constituíram o fator mais importante da redução recente da desigualdade de renda no Brasil, que teve sua origem principal no mercado de trabalho (Hoffmann, 2005). Logo, se as principais dinâmicas que levaram ao decréscimo da desigualdade encontram-se no mercado de trabalho, justifica-se um olhar mais atento à evolução da demanda e oferta por trabalho qualificado na economia brasileira no período recente, na medida em que os diferenciais de salário por qualificação são um dos determinantes centrais da desigualdade de renda gerada no mercado de trabalho (Menezes Filho, 2001).

A relação entre desigualdade e educação vem sendo discutida com mais intensidade no Brasil desde o final da década de 1970, quando os primeiros estudos empíricos utilizando dados dos Censos Demográficos de 1960 e 1970 foram realizados (Hoffmann; Duarte, 1972; Langoni, 1973). O objetivo deste capítulo não é fazer uma discussão extensa desse debate (para isso, ver Menezes Filho, 2001), mas sim apresentar a visão de um dos seus proponentes (Langoni, 1973), que antecipou em grande parte as conclusões que serão aqui apresentadas.

Seguindo as ideias de Kuznetz (1955) e provocando um debate intenso no meio acadêmico brasileiro, Langoni (1973, p.97) afirma que:

as mudanças clássicas que acompanham o processo de desenvolvimento econômico levam a um aumento nos índices agregados de concentração (de renda), sem que seja possível atribuir-lhes qualquer sentido de deterioração de bem-estar. Este é o caso típico do fluxo de mão de obra que deixa regiões e setores cuja renda real é relativamente baixa; da entrada no mercado de trabalho de jovens e mulheres e, principalmente, da melhoria ou ascensão educacional da força de trabalho, existente e em formação.

Mais recentemente, parece ter havido uma convergência nas diversas ciências sociais para um conjunto de teses comuns, sendo que uma das principais é a de que a desigualdade de renda é afetada pelo desempenho escolar, que pode ser explicado parcialmente pela quantidade e qualidade do ensino. Portanto, políticas educacionais são diretamente responsáveis pela diminuição da desigualdade no país (Reis; Barros, 1990). Essa articulação teórica foi acompanhada por constatações sobre o gap a ser coberto, assim como a avaliação do efeito do sistema escolar, independentemente e para além das características individuais e seu contexto socioeconômico (Barros; Lam, 1993; Ribeiro, 2010).

Neste capítulo, o objetivo é examinar de que forma a evolução da oferta de trabalhadores com diferentes níveis de educação afetou o comportamento dos diferenciais de salário e, por consequência, a desigualdade de renda no mercado de trabalho brasileiro nos últimos quarenta anos. Especificamente, argumenta-se que o aumento da escolarização recente, especialmente no nível médio, provocou uma queda dos retornos à educação e, portanto, da desigualdade de renda. 

*Trecho extraído das páginas 109 a 112. Texto de Naercio Menezes Filho e Charles Kirschbaum