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quinta-feira, 11 de junho de 2015

A Revolução Coreana - O desconhecido socialismo Zuche

Escrita por Paulo G. Fagundes Visentini, Analúcia Danilevicz Pereira e Helena Hoppen Melchionna a nova obra da coleção Revoluções do Século 20 apresenta um retrato não caricatural de um dos regimes mais fechados do mundo, o da Coreia do Norte. Os autores traçam uma linha histórica desde a Guerra da Coreia, passando pelos anos de apogeu econômico, a Marcha Penosa dos anos 1990 até os dias atuais para apresentar um dos países que mais tensionam, até hoje, todo o sudeste asiático. Confira a seguir trecho da obra, que chega às livrarias até o fim de junho.                                                                                    

A Guerra Fria e a divisão da Coreia (1945-1948)*

A Coreia e o nordeste da China, ao longo da Segunda Guerra Mundial, tornaram-se uma praça de armas, reservas militares e centros industriais, por se encontrarem protegidas dos bombardeios norte-americanos. Durante a Conferência de Ialta, foi demandado à URSS atacar os japoneses pela retaguarda, noventa dias após o fim das hostilidades na Europa (8 de maio), o que se deu em agosto de 1945, simultaneamente ao bombardeio nuclear das cidades de Hiroshima e Nagasaki. Este último evento estava mais vinculado à nascente Guerra Fria que à Segunda Guerra Mundial, que se encerrava. Mas, ao mesmo tempo que a URSS era introduzida na balança de poder da Ásia oriental, por força dos acordos de Ialta, o presidente Truman (que substituía o recentemente falecido Roosevelt) procurava limitar o impacto desse novo fator regional, bem como a emergência dos movimentos nacionalistas e revolucionários asiáticos.

A divisão da Coreia resultou da falta de uma política de longo prazo por parte das grandes potências. A Carta do Atlântico (1941) mencionava, de forma imprecisa, o conceito universal de autodeterminação, e a Conferência do Cairo (1943) definia a liquidação do império japonês, bem como a emergência da China nacionalista a um papel destacado na ordem mundial, mencionando que a Coreia e outras colônias deveriam se tornar independentes “no devido tempo” (para Roosevelt, aproximadamente quarenta anos!). No início de 1945, Roosevelt e Stalin acordaram excluir a China e a Grã-Bretanha de um regime de tutela americano-soviético sobre a Coreia, mas não definiam procedimentos concretos. A ação militar nos últimos dias da guerra viria a criar uma situação de divisão militar temporária ao longo do Paralelo 38°, uma linha traçada no mapa por dois coronéis americanos em poucos minutos e aceita pelos soviéticos.

A península coreana, por seu status colonial, sua situação geopolítica e pelo súbito colapso dos japoneses, viria a constituir uma região altamente sensível no desencadeamento da Guerra Fria, diretamente vinculada ao jogo das grandes potências. Ocorreu a confluência da clivagem sociopolítica interna com a partilha geográfica do território entre os Estados Unidos e a União Soviética, na altura do Paralelo 38°. A resistência antijaponesa havia estabelecido comitês populares imediatamente após a rendição do Japão, mas ao sul da linha demarcatória os EUA mantiveram as unidades pró-japonesas em funções de polícia, dissolvendo os comitês, que seguiram existindo apenas na porção setentrional. Os norte-americanos apoiavam um grupo de políticos conservadores colaboracionistas, agrupados sob o Partido Democrático Coreano, e os nacionalistas exilados, liderados por Syngman Rhee, que retornou dos EUA, tendo vivido exilado 37 dos seus 60 anos.

Syngman Rhee e Kim Il Sung logo se tornaram as figuras políticas dominantes nas duas zonas. O primeiro havia vivido nos EUA por quase duas décadas, e tinha convicções antijaponesas e anticomunistas. O segundo era o herói da resistência armada na Manchúria, tinha convicções nacionalistas e comunistas, além da confiança dos soviéticos. Ainda que ambos contassem com o apoio de uma superpotência, não eram personalidades maleáveis, por vezes forçando “sua superpotência” a levar em conta sua vontade. Ao contrário de Rhee, porém, que fora escolhido a dedo pelos EUA, Kim Il Sung emergiu como principal liderança comunista dos guerrilheiros manchurianos, os quais se converteriam no núcleo da hierarquia norte-coreana, demonstrando-lhe extrema lealdade até o fim de suas vidas.

Além disso, como guerrilheiro Kim Il Sung atuara em conjunto com o PCCh (do qual chegou a ser membro) e suas forças. Depois que os japoneses tornaram inviável a atividade guerrilheira na Manchúria e no norte da Coreia, Kim se refugiou no extremo oriente soviético. Pouco se sabe sobre esse período, mas também falava russo e foi integrado às unidades coreanas do Exército Vermelho, tendo retornado à Coreia com a patente de capitão soviético. Era jovem e dinâmico, e os soviéticos o consideravam leal e maleável. Por outro lado, Moscou desconfiava dos comunistas do undergroundcoreano e dos guerrilheiros, por causa das infiltrações promovidas pelos japoneses.

Uma das discussões centrais desse período diz respeito à real influência que tinha a URSS sobre a Coreia. Cumings é bastante reticente nesse sentido, ressaltando a especificidade do modelo comunista estabelecido na Coreia do Norte e sua relativa autonomia desde a fundação. Assim, ele afirma que

A Coreia do Norte não foi simplesmente um satélite soviético nos anos 1940, mas evoluiu de um regime de coalizão, estruturado nos amplamente difundidos comitês populares, durante 1945-1946, para um regime de relativo domínio soviético durante 1947-1948, mas desenvolvendo logo importantes laços com a China em 1949, o que permitiu à RPDC manobrar, desde então, entre os dois gigantes comunistas. (Cumings, 1997, p.249)

Em primeiro lugar, é importante notar que a experiência coreana é mais comparável aos casos da Romênia e da Iugoslávia, onde o nacionalismo continuou tendo um papel fundamental mesmo com a ascensão de regimes socialistas, do que aos dos Estados do Pacto de Varsóvia. Em segundo lugar, na Coreia do Norte, a influência soviética competiu com a chinesa, e ambas tiveram de competir também com as formas e práticas políticas domésticas. Nesse sentido, Armstrong ressalta que, apesar da influência soviética sobre a Coreia, a China foi significativa para a formação da elite governante norte-coreana:

A URSS exerceu, é claro, uma grande influência sobre a RPDC, e muitos dos primeiros líderes norte-coreanos passaram bastante tempo na URSS. Como a Alemanha Oriental, a Polônia e outros países do Leste Europeu, a Coreia do Norte foi ocupada pelo exército soviético imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Mas a liderança norte-coreana também estava intimamente ligada à Revolução Chinesa, e muitas das principais figuras políticas da Coreia do Norte, incluindo Kim Il Sung, foram membros do PCCh. O núcleo do exército da RPDC era composto de veteranos coreanos da Revolução Chinesa. (Armstrong, 2003, p.2)

Em terceiro lugar, mesmo que tenha existido, desde 1945, um grupo coreano-soviético, cujo núcleo era composto por coreanos nascidos na URSS e refugiados filiados ao partido soviético, ele desempenhava um papel secundário na política peninsular. Ainda que tenha participado do poder até os anos 1950, esse agrupamento foi praticamente eliminado das instâncias dirigentes em 1956. Em quarto lugar, apesar de a Coreia ter sido importante para a Rússia desde a época dos czares, os soviéticos tinham certa desconfiança em relação aos coreanos, mesmo os que lutavam na Manchúria contra os japoneses, pois temiam que alguns pudessem ser agentes pró-japoneses. Por fim, a Coreia não era uma região prioritária para a URSS, como era a Europa. Ao contrário dos demais Estados do campo soviético, como os do Leste Europeu, havia um limitado número de assessores soviéticos na Coreia do Norte, o que lhe conferia certa margem de autonomia. Por fim, as tropas soviéticas se retiraram completamente em 1948.

Nesse sentido, a RPDC constitui um caso original dentre os regimes marxista-leninistas do pós-guerra. Em última instância, houve uma profunda reestruturação das práticas políticas coreanas tradicionais da época pré-colonial, resgatando desde o papel extraordinário do líder até sua ideologia de autossuficiência e sua política exterior de isolacionismo. Portanto, carece de fundamento histórico de que se tratava de uma réplica asiática do “stalinismo”.

*Trecho extraído das páginas 47 a 50.