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segunda-feira, 13 de abril de 2015

Moeda e crise econômica global

Se a crise financeira desencadeada em 2007 nos Estados Unidos ameaçava espraiar-se pelo planeta, com efeitos devastadores de longo prazo, hoje analistas econômicos já anunciam alvissareiros que o pior já passou. Porém, que medidas estruturais teriam sido tomadas para reverter a maior crise desde o crash de 1929? Como os organismos multilaterais e as potências globais combateram os efeitos adversos da hegemonização das finanças na economia internacional? Luiz Afonso Simoens se depara com essas questões neste breve e vigoroso livro a respeito dos descaminhos de nossa história financeira recente. Escrito em linguagem acessível para o leitor não especializado, apresenta um panorama heterodoxo das principais tendências deste início de século. Confira a seguir trecho da obra, que chega às livrarias até o fim de abril. 

Concentração da renda e da riqueza*

O terceiro e último fator desestruturador da não ordem econômica pós-Bretton Woods está nos impactos que as crises provocaram nas camadas menos protegidas da população. Já foi mencionado que, em 1929, a produção industrial caiu entre 20% e 30% nos Estados Unidos, Alemanha e Grã-Bretanha. O desemprego afetava milhões de pessoas naqueles países. Em 1933, um quarto da força de trabalho dos Estados Unidos estava desempregada e 28% dos 120 milhões de habitantes não tinham fonte visível de renda. Relatório de 2009 da Organização das Nações Unidas (ONU) está dentre os primeiros trabalhos a apontar a mesma situação depois da crise de 2007. Suas estimativas mencionam um acréscimo de 50 milhões de pessoas desempregadas no mundo em 2009, com relação a 2007, e que cerca de 200 milhões de pessoas poderiam ser empurradas para a pobreza.

Para os propósitos deste estudo, talvez seja mais importante lembrar os impactos na concentração de renda e da riqueza resultantes das políticas liberais de enxugamento das máquinas estatais e de crescimento da importância relativa dos sistemas financeiros, agora internacionalizados. Após 1980, a remuneração dos trabalhadores norte-americanos sofreu deterioração relativamente aos lucros empresariais, que inverteu a tendência virtuosa dos 25 anos iniciados com o fim da guerra. Os lucros empresariais, por sua vez, mostraram uma parcela crescente de apropriações por parte de empresas financeiras, com relação a não financeiras. O estoque de riqueza financeira da sociedade norte-americana também aumentou relativamente mais do que a renda disponível, líquida de impostos. No plano mundial, os dados permitem explicitar o processo de “financeirização” da riqueza, ao mostrar uma ampla difusão da preferência por liquidez nas formas de acumulação de ativos. Isso é sintetizado no conceito de profundidade financeira, que é calculado pela razão percentual ativos financeiros globais/PIB.

A “financeirização” da riqueza

A globalização financeira promoveu algumas mudanças estruturais com consequências danosas. A internacionalização e desregulamentação dos sistemas financeiros e dos mercados de capitais favoreceu uma tendência de concentração de renda, aqui analisada com dados dos Estados Unidos, e de “financeirização” da riqueza, cujos dados mais abrangentes envolvem praticamente a totalidade dos países do mundo.

O neologismo “financeirização” deve ser entendido não apenas como o crescimento da importância dos sistemas financeiros na geração de lucros, muito além da esfera do crédito, mas a difusão de uma ótica especulativa por todo o aparato produtivo da economia monetária contemporânea. Ele exprime uma mudança nas formas de apropriação da riqueza. Na época do capitalismo industrial norte-americano, grosso modo o período que se estende até 1970 e 1980, o conceito de riqueza estava muito associado à posse de bens físicos produzidos por empresas não financeiras, com retornos de longo prazo. A partir de 1980, a preferência por parte dos investidores cresceu exponencialmente no rumo da posse de riqueza financeira, isto é, de ações e papéis de dívida pública e privada, com horizontes de ganhos de curto prazo. Um claro sinal de que o aumento geral da incerteza induziu os agentes econômicos a se manterem o mais próximo possível da liquidez.

O presidente de um potentado econômico, cínico, mas realista, dizia ser preciso dançar em todos os bailes, mas que seria sempre bom fazê-lo perto da porta de saída. A observação procede porque, provavelmente sem o saber, ela reflete uma análise de corte marxista. Para Belluzzo (2012, p.88), o capital a juros é a forma mais acabada de existência do capital, porque é a mais livre e líquida, ao mesmo tempo em que crescentemente centralizada. “Apenas dessa maneira [o capital] pode fluir sem obstáculos, para colher novas oportunidades de lucro e, concomitantemente, reforçar o poder do capital industrial e mercantil imobilizado nos circuitos prévios de acumulação.” A riqueza líquida não é uma deformação da acumulação de capital físico, mas uma “evolução” para uma forma superior de exploração capitalista.

Uma série histórica das contas nacionais dos Estados Unidos, coletada pelo Federal Reserve (2013), mostra a tendência de concentração da renda e da riqueza no país (gráficos 3 a 5). A partir de 1950, a remuneração do trabalho, que inclui salários e contribuições patronais e dos empregados para a seguridade social, era da ordem de 59% do total da renda nacional. O período de crescimento econômico pós-guerra melhorou a situação dos trabalhadores, que, em 1980, se apropriavam de 68% da renda nacional. A partir de então, a tendência da remuneração dos trabalhadores tem sido de queda: 63% em 2000 ou menos cinco pontos percentuais desde o pico naquele ano. Em 2012, 62% ou menos um ponto percentual adicional.

O comportamento dos lucros empresariais e dos ganhos rentistas explica essa tendência, porque a parcela da renda apropriada pelos diversos níveis de governo foi bastante estável no tempo: cerca de 9%. Os lucros das empresas caíram de 1950 (13%) a 1980 (8%) e subiram para 9% da renda nacional até 2000. A partir de então, atingiram o pico de 14% da renda nacional em 2012.

Gráfico 3 – Distribuição da renda nacional dos Estados Unidos – % do total


Fonte: FED Flow of Funds Accounts of the United States, 7 mar. 2013.

Gráfico 4 – Lucros domésticos após impostos nos Estados Unidos – % do total


Fonte: FED Flow of Funds Accounts of the United States, 7 mar. 2013.

Gráfico 5 – Evolução nominal da renda e da riqueza nos EUA (1950-2012) – US$ bilhões


1 Renda pessoal menos impostos.
2 Ativos financeiros mais ativos não financeiros menos passivos.
Fonte: FED Flow of Funds Accounts of the United States, 7 mar. 2013.

Uma observação, porém: entre 1950 e 1980, com o sistema financeiro norte-americano regulado pela Lei Glass-Steagall, a tendência foi a de dominância da participação dos lucros de empresas não financeiras. Em 1980, 89% do lucro era desse tipo de empresa, contra apenas 11% das instituições financeiras. Não por acaso 1980 se tornou um marco, o fim de uma era, com a posse do presidente Ronald Reagan em 1981. A partir daí, os lucros financeiros cresceram rapidamente, atingindo 31% do total em 2005, contra 69% dos lucros não financeiros. O ajuste na crise de 2008 levou a que os lucros financeiros desabassem para 6%, mas, daí para a frente se recuperaram para a casa dos 26% do total em 2010 a 2012.

*Trecho extraído das páginas 85 a 89.