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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Autora descreve o perfil dos três líderes mais recentes da Cosa Nostra







Leia abaixo trecho inédito de Os últimos chefões, de Alessandra Dino. Ela descreve uma máfia em busca de estreitar relações com o mundo da política e da própria economia, produzindo, para isso, novos modelos organizacionais e estilos de comando. A obra chega no fim de novembro às livrarias

“O que realmente desperta o interesse nessa correspondência, porém, é a nova característica que se nota nas cartas de Matteo Messina Denaro (*), o qual – com uma série de indicações mais pragmáticas sobre contratos e porcentuais a serem exigidos – exterioriza a atitude de estar habituado a comandar com segurança despótica, passando de uma citação erudita a uma referência à atualidade. Escreve, por exemplo, numa carta de 1º de outubro de 2004:

Não gosto de falar de mim mesmo e, de qualquer modo, há anos que são os outros a falar de mim… creio, contra minha vontade, ter me transformado no Malaussène de tudo e de todos… mas tudo bem… sou fatalista. Sei que vivi como um homem de verdade e isso me basta…

Do mesmo modo – em carta de 1º de fevereiro de 2005 –, podemos ler as seguintes considerações eruditas em relação à justiça e ao sistema político italiano:

Jorge Amado dizia que não há nada mais baixo que a justiça, quando anda de braços dados com a política, e concordo com ele. Há uns quinze anos houve um golpe de estado tingido de sangue realizado por alguns magistrados com indivíduos da política.

Mais tarde, estendendo a reflexão ao panorama político italiano como um todo, Alessio prossegue: “Já não há mais o político de raça, o único do qual me lembro foi Craxi e vimos o fim que ele levou… Hoje, para ser um bom político, basta se apresentar como antimáfia”.
Enfim, ainda de forma mais explícita, manifesta a própria absoluta desconfiança em relação ao sistema judiciário italiano: “Sou inimigo da justiça italiana que é podre e corrupta desde seus alicerces, como diz Tony Negrie eu penso como ele”. Em outra carta, de 22 de maio de 2005, Messina Denaro volta a expressar sua profunda desconfiança em relação àquela parte da classe política italiana sobre a qual havia, evidentemente, depositado suas expectativas:

Meu ceticismo era e está dirigido à classe dirigente do País. Não vejo homens, só moluscos oportunistas que se dobram como galhos ao vento, digo isso com conhecimento de causa, e o pior é quem os chefia, um trapaceiro vulgar; e paro por aqui porque, por escrito, não quero ir além.

Deixando uma mensagem inquietante, prossegue:

Ainda vão ouvir falar muito de mim, ainda há páginas de minha história a escrever. Não serão esses “bons” e “integérrimos” de nossa época, tomados por um fanatismo messiânico, que conseguirão deter as ideias de um homem como eu. Isso é um axioma.

De toda essa copiosa correspondência impressiona especialmente o estilo da escrita de Alessio-Messina Denaro, que apresenta uma absoluta novidade na história da organização criminosa. Sua argumentação bastante abstrata e refinada, cheia de citações e de referências literárias, de fato, é totalmente alheia às habituais lógicas mafiosas, criando a suspeita de que a redação dessas cartas seja produto da intervenção de uma mão diversa daquela que, no final, assina o nome.
[...]
No entanto, sabe-se que o chefão de Trápani conta com o auxílio de um escrevente; e que este não se limita a intervir apenas na fase da produção gráfica da mensagem, porém – mesmo não alterando seu conteúdo – reelabora sua forma. Inevitavelmente, isso acaba por definir novos contextos de interação, relacionados a identidades e estruturas de personalidade – como também a estilos de liderança – não mais comparáveis àqueles anteriormente relacionados a Riina e Provenzano (**).
Isso inclusive poderia não ser casual, pois o uso de um escrevente possivelmente não é apenas uma exigência ditada por problemas de segurança (ocultar os traços da própria caligrafia, por exemplo), mas surgir da necessidade de usar um cômodo consultor de imagem, num renovado estilo de gestão da própria liderança mafiosa.”

De qualquer modo sejam considerados, os escritos de Alessio, suas longas digressões sobre a vida, a religião, a justiça e a democracia constituem uma mina preciosa para se conhecer pelo menos um fragmento da Weltanschauung de Messina Denaro.
Impressiona, por exemplo, sua atitude singular em relação à fé, único entre os membros mais importantes do contexto criminoso mafioso – todos declaradamente católicos ou, pelo menos, ligados à ritualidade como elemento de identificação e manutenção da organização criminal – a manifestar abertamente um respeitoso agnosticismo, baseado em experiências de desilusão e sofrimento. A esse respeito, argumenta deste modo Alessio [...]:

Notei, com prazer, que o senhor, apesar de sua vivência, conseguiu manter seu credo e sua fé, eu não consegui. Mamãe é uma pessoa de fé e na fé criou os próprios filhos, num certo momento não sei como e nem quando me dei conta, com grande amargura, que havia perdido seu tempo comigo, não tinha mais minha fé e não acreditava mais em nada, para mim Deus não existia mais ou pelo menos não se dava ao trabalho de olhar para baixo, quando se tratava de mim.

Evidencia-se uma perspectiva nova sob a qual observar o mundo da Cosa Nostra; singular, e ao mesmo tempo contraditória. A franca confissão do chefão, reverente e ao mesmo tempo distanciado em relação aos valores da tradição religiosa familiar, é seguida de uma declaração de intenções que deixa entrever a predileção por uma ética laica, baseada – eis o paradoxo – na integridade e no respeito dos valores de uma pessoa encerrada numa condição existencial de solidão:

Não tendo mais fé não há mais esperança, e de fato hoje vivo como o fado me destinou, preocupo-me apenas em ser um homem correto, fiz da integridade minha filosofia de vida e espero morrer como um homem justo, todo o resto não tem mais valor.

[...]”

* Matteo Messina Denaro é considerado o atual chefe da Cosa Nostra. Está foragido há mais de dez anos.
** Totò Riina e Bernardo Provenzano foram os líderes anteriores a Messina Denaro e estão presos.

Extraído das páginas 229 a 233, capítulo 7, As Metamorfoses.

Pela Editora Unesp, Alessandra Dino publicou Novas tendências da criminalidade transnacional mafiosa (2010). 

Sobre a Máfia Italiana, a Editora Unesp publicou História da máfia (2002), de Salvatore Lupo.