terça-feira, 14 de janeiro de 2014
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EUA: normas federais insossas e regulação estadual e local detalhista |

O peso do estado na pátria do mercado – os Estados Unidos como país em desenvolvimento, que chega às livrarias até fevereiro, exibe uma faceta pouco comentada daquele país. Os autores Reginaldo Moraes e Maitá de Paula e Silva analisam o receituário dos porta-vozes de sua intelectualidade mainstream, para os países em desenvolvimento: “Mais do que ouvir aquilo que dizem, convém estarmos atentos para o que fizeram e fazem”, afirmam, referindo-se à forte e histórica intervenção estatal dos Estados Unidos na economia.
“Nos Estados Unidos não há universidades federais. E, no entanto, o governo federal é, de fato, o motor e modelador do sistema de ensino superior. Exerceu esse papel já no século XIX, fomentando a criação de colleges e universidades por doação condicional de terras aos estados. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, voltou à carga com um gigantesco programa de bolsas para veteranos que massificou o ensino superior como em nenhum outro país. E, nas décadas seguintes, transformou as grandes universidades de pesquisa – públicas ou privadas – em instituições dependentes de suas demandas, graças à pesquisa programática, encomendada sobretudo pelo Departamento de Defesa.
E tudo isso aconteceu sem que houvesse, como dissemos, uma única universidade federal, sem que houvesse um aparato de certificação e regulamentação federal, sem que houvesse ao menos uma política nomeada, reconhecida, identificada e unificada para a educação superior e a pesquisa científica e tecnológica. Governando os entes subnacionais por meio de transferências (de terras ou recursos monetarizados) e delegações de competência, o governo federal fez crescer sua influência paulatinamente, com picos significativos quando situações de emergência tornavam mais fácil a retórica da crise iminente, do perigo que exige uma espécie de ditadura comissária, a centralização de poder delimitada pela missão urgente e indeclinável – pode ser a recessão ou a guerra contra um império do mal.
As transferências financeiras da União cumpriram esse papel dirigente. No século XIX, o processo marcou em especial a educação e a agricultura. No século XX, as transferências federais aumentaram maciçamente com o New Deal, os programas de infraestrutura de Dwight Eisenhower, a “Grande Sociedade” de Lyndon Johnson. O funcionalismo crescia no nível dos governos estaduais e locais. Por essa via, o governo federal agia energicamente por intermédio dos entes subnacionais – que operavam bem mais, mas decidiam menos. A União passava a controlar suas atribuições, impor contrapartidas regulamentares e formular as estruturas e procedimentos de gestão do auxílio. Este capítulo registra um desses episódios reveladores do ativismo estatal norte-americano: a criação de uma enorme rede de universidades e faculdades (colleges) no século XIX, por meio da política de doação condicional de terras federais – os “land
grant colleges and universities”.
* * * *No período colonial, o ensino superior, nos Estados Unidos, concentrava-se em algumas poucas instituições, sujeitas a diferentes graus de controle público, mas essencialmente controladas por entes privados. Após a Guerra da Independência, alguns estados começaram a criar universidades públicas.
Durante a primeira metade do século XIX, desenvolveram-se, lado a lado, dois tipos de colleges (faculdades) e universidades: um sob controle público e outro sob controle privado. Ambos eram fortemente influenciados pelas universidades europeias, onde haviam se formado muitos de seus principais professores.
Assim, de início, as instituições norte-americanas ofereciam sobretudo currículos que giravam em torno de disciplinas ou campos “clássicos” [...] Em meados do século XIX, porém, já se observavam científico e técnico. Além disso, a importância da agricultura e dos agricultores na formação da economia, da sociedade e do jogo político gerava certa expectativa de políticas voltadas para o desenvolvimento desse setor.
Antes da Guerra Civil, os estados do Sul tinham bloqueado qualquer auxílio governamental ou regulação para a agricultura. No entanto, quando se separaram da União em 1861, abriram caminho para a criação de um departamento de agricultura. O presidente Lincoln e o Partido Republicano apoiaram sua criação e, em 1862, o Congresso aprovou uma lei que estabelecia o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (em inglês, USDA) e o autorizava a adquirir, testar e distribuir novas sementes e plantas, conduzir experimentos práticos e científicos, coletar estatísticas e outras informações agrícolas e publicar relatórios anuais e outros que pudessem melhorar a agricultura.
O primeiro diretor do USDA, Isaac Newton, deu ênfase à pesquisa e à educação para ajudar os agricultores a aperfeiçoar sua atividade e, até o fim do século XIX, oficiais, técnicos e cientistas se dedicaram a fazer aumentar a produtividade agrícola no país.
No fim da década de 1860 e início da de 1870, o USDA expandiu sua atividade científica, em particular no campo da nutrição e da patologia animal e vegetal, e iniciou experiências com produtos químicos para controlar ou evitar o ataque de insetos às plantações. A partir da década de 1880, a política do departamento começou a dar ênfase ao controle sanitário e à regulação de produtos agrícolas. Ao longo da década de 1890, uma nova legislação lhe deu poderes de inspeção sanitária, e iniciou-se um trabalho de melhoria das estradas rurais para facilitar o acesso dos agricultores ao mercado; além disso, houve um trabalho contínuo de busca e expansão de mercados estrangeiros para os produtos agrícolas norte-americanos. No fim do século XIX, a direção do departamento procurou disponibilizar suas descobertas científicas aos agricultores de todo o país, mas para isso era necessário um sistema de “educação agrícola”.
O congressista Justin Smith Morrill apresentou sua primeira proposta de lei para a criação de land grant colleges em 1857. Após um ano de manobras legislativas, o Congresso aprovou em 1859 a Lei Morrill (Morrill Act). Ela foi vetada pelo presidente Buchanan (eleito com apoio dos sulistas) sob a alegação de que violava a tradição da política federal de deixar aos estados o controle da educação. [...] Com a Guerra Civil e a ausência dos congressistas dos estados do Sul, então separados da União, o ambiente no
Congresso se tornou mais favorável e a Lei Morrill foi aprovada em 1862.
O apoio federal previsto na Lei Morrill era a renda de terras públicas (30 mil acres ou o recibo nesse valor de cada congressista e senador). Os estados, por sua vez, deviam providenciar os edifícios de sua instituição land grant e contribuir para sua manutenção. Desse início modesto, o governo federal expandiu significativamente suas contribuições para o sistema land grant.
Atualmente, além da renda original dos land grant, verbas federais ajudam os estados a manter as instituições. Essas verbas são distribuídas segundo diferentes critérios: algumas vão para os estados em quantidades iguais, outras são divididas de acordo com a população rural do estado, outras segundo a razão entre população local e população total do país, e assim por diante.
[...]
O expediente de doar terras para expandir a educação já havia sido utilizado antes pelo governo federal e pelos governos estaduais. A primeira reedição da Lei Morrill, em 1890, não apenas suscitou a criação de novas instituições, mas também providenciou uma dotação anual para promover as já existentes. Além disso, outras leis tiveram impacto sobre os land grant colleges.
Em 1887, a Lei Hatch destinava recursos federais para o estabelecimento de estações agrícolas experimentais. Em 1906, a Lei Adams ampliava significativamente os recursos dessas estações. Um novo ato, a emenda Nelson à segunda Lei Morrill, destinava recursos ao treinamento de professores dos land grant.
Em 1917, A Lei Smith-Hughes alocava verbas para o ensino vocacional nesses campos. E, em 1914, a Lei Smith-Lever estimulava a criação de um vasto campo de serviço de extensão agrícola nos land grant. Com isso, as fontes de recursos das instituições (inclusive dotações estaduais) diversificavam-se e o escopo de suas atividades ampliava-se, tanto quanto de seu público-alvo.
Atualmente, estima-se que 15% dos estudantes de nível superior dos Estados Unidos são atendidos por essas instituições. E elas são responsáveis por dois terços dos diplomas de doutorado.
Extraído do capítulo 3, Políticas de conhecimento: a propagação das escolas superiores