quinta-feira, 16 de julho de 2015
O último de Jacques Le Goff
Em A história deve ser dividida em pedaços? (Faut-il vraiment découper l’histoire en tranches?), sua última obra, escrita em 2013, Jacques Le Goff (1924-2014) contesta a periodização da história, tomando como base a “fatia” conhecida como “Idade Média". Para ele o período foi mais extenso do que reza a historiografia clássica, além de mais criativo e menos obscurantista do que se imagina. Le Goff defende que a Idade Média abarca o Renascimento e teria começado nos século 14 e 15, quando alguns poetas e escritores atribuem-se a condição de produto e iniciadores de uma cultura inédita: “Quiseram então definir, de modo pejorativo, o período do qual eles pensavam afortunadamente sair”.
Traduzido por Nícia Adan Bonatti e publicado originalmente pela Seiul no ano passado, o livro estará nas livrarias a partir de 5 de agosto. Confira um trecho da obra:
Aparecimento tardio da idade média*
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Le Goff: A imagem de um período histórico pode mudar com o tempo |
A partir do século XIV, mas sobretudo no século XV, alguns poetas e escritores, especialmente italianos, tiveram o sentimento de que evoluíam em uma nova atmosfera, e de que eram ao mesmo tempo o produto e os iniciadores dessa cultura inédita. Quiseram então definir, de modo pejorativo, o período do qual eles pensavam afortunadamente sair. Esse período, se terminasse com eles, teria começado aproximadamente com o fim do Império Romano, época que, aos seus olhos, encarnava a arte e a cultura, que havia testemunhado o surgimento de grandes autores – que, aliás, eles conheciam muito mal: Homero, Platão (somente Aristóteles era utilizado na Idade Média), Cícero, Virgílio, Ovídio etc. Desse modo, o período que eles buscavam definir tinha como única particularidade o fato de ser intermediário entre uma Antiguidade imaginária e uma modernidade imaginada, a que deram o nome de “idade média” (media ætas).
O primeiro a empregar a expressão foi o grande poeta italiano Petrarca (1304-1374), no século XIV. No século XV foi seguido, particularmente em Florença, por poetas e principalmente por filósofos, por moralistas. Todos tinham o sentimento de personificar uma moral e valores novos nos quais, mais que a preeminência de Deus e dos apóstolos, dos santos etc., impunha-se o Homem em suas virtudes, em seus poderes, em sua condição: daí vem o nome de “humanistas” que eles se deram. Assim, na obra do bibliotecário pontifical Giovanni Andrea (1417-1475), considerado como um humanista de qualidade, encontramos, em 1469, a primeira utilização do termo “Idade Média” com um valor de periodização cronológica: ele distingue “os antigos da Idade Média (media tempestas) dos modernos de nosso tempo”.
Entretanto, o uso da expressão “Idade Média” não parece ter sido corrente antes do fim do século XVII. Na França, na Itália e na Inglaterra, no século XVI e principalmente no XVII, falava-se mais em “feudalidade” [féodalité]. Apesar disso, na Inglaterra, a expressão “tempos sombrios”, dark ages, foi cada vez mais empregada pelos eruditos para designar esse período. Em 1688, o historiador luterano alemão Christoph (Keller) Cellarius, no segundo tomo de sua História universal, define a primeira Idade Média como o período que vai do imperador Constantino até a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. A expressão, ou expressões equivalentes ou vizinhas, acabou por triunfar entre os filósofos do século XVIII, de Leibniz a Rousseau.
No entanto, foi preciso esperar até o século XIX e o romantismo para que a Idade Média perdesse sua conotação negativa e se revestisse de certo brilho: assim ocorre com a publicação de Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, ou com a fundação, na França, em 1821, da École nationale des chartes, ou ainda com o lançamento, na Alemanha, entre 1819 e 1824, das Monumenta Germaniae Historica, que publicam as fontes concernentes à Alemanha antiga e sobretudo medieval. Em 1840, Victor Cousin pôde escrever: “Depois de ter, no primeiro momento de emancipação, acusado, blasfemado, desdenhado a Idade Média, nós nos pomos a estudá-la com ardor e até mesmo com paixão.” A história medieval, tornada simultaneamente científica e social, faz esforços até mesmo para ser global. Com o norte-americano Charles Haskins (1870-1937) e sua obra sobre o “Renascimento do século XII,” e sobretudo com o francês Marc Bloch (1886-1944) e a escola dos Annales, a Idade Média torna-se uma época criativa, com seus brilhos (é, em particular, o “tempo das catedrais”) e suas sombras. Contudo, mesmo que o termo tenha perdido seu sentido pejorativo entre os historiadores, a expressão “Não estamos mais na Idade Média” perdura, prova da perpetuação de uma imagem negra desta época.
Uma história dessa concepção negativa da Idade Média entre o século XV e o final do século XVIII foi mapeada por Eugenio Garin. Esse estudo esclarece as noções de renovação e de renascimento, por um lado, e de trevas, por outro, associadas à Idade Média pelos pensadores europeus para fazer dela um período obscuro, caracterizado pela ignorância. Foi somente no início do século XIX que uma polêmica opôs os partidários de uma nova imagem da Idade Média, positiva – particularmente Costantino Battini (1757-1832), em sua Apologia dei Secoli Barbari (1824) –, aos adeptos de uma visão tenebrosa dessa época, resumida no final do século XVIII por Saverio Bettinelli (1718-1808).
A periodização da história jamais é um ato neutro ou inocente: a evolução da imagem da Idade Média na época moderna e contemporânea comprova isso. Por meio da periodização, expressa-se uma apreciação das sequências assim definidas, um julgamento de valor, mesmo que seja coletivo. Aliás, a imagem de um período histórico pode mudar com o tempo.
A periodização, obra do homem, é portanto ao mesmo tempo artificial e provisória. Ela evolui com a própria história. Em relação a isso, ela tem uma dupla utilidade: permite melhor controlar o tempo passado, mas também sublinha a fragilidade desse instrumento do saber humano que é a história.
O termo “Idade Média”, que expressa a ideia de que a humanidade sai de um período brilhante esperando, sem dúvida, entrar num período tão radioso quanto, é difundida, diz-se, no século XV, principalmente em Florença: aí está a razão pela qual essa cidade se torna o centro do humanismo. O próprio termo “humanismo” não existe antes do século XIX: em torno de 1840, ele designa a doutrina que coloca o homem no centro do pensamento e da sociedade. Parece que ele é primeiramente encontrado na Alemanha, e depois em Pierre Joseph Proudhon, em 1846. É em 1877 que aparece a expressão “humanistas do Renascimento”. Vemos que o termo “Renascimento” levou tempo para impor-se diante do termo “Idade Média”. A oposição entre ambos data das lições de Jules Michelet no Collège de France, em 1840: voltaremos a isso.
Se agora nos voltarmos para trás, a cronologia não é mais clara, nem mais precoce. Na Idade Média, a noção de “Antiguidade” é reservada a Grécia e Roma pelos eruditos. A ideia de uma Antiguidade da qual, de alguma forma, sairia a Idade Média – dado que esse período dito antigo parece ter sido o modelo e a nostalgia da maior parte dos clérigos medievais – não aparece antes do século XVI, e ainda assim de maneira fluida. Montaigne, na narrativa de sua viagem à Itália (1580-1581), utiliza o termo “Antiguidade” no sentido que conhecemos, como período anterior à Idade Média, porém Du Bellay, em suas Antiquités de Rome (1558) só o emprega no plural.
Duas observações se impõem aqui. Em primeiro lugar, é a importância da Itália nessa longa história de periodização do tempo. Assim, desde a época pagã até o cristianismo, Roma mediu o tempo ocidental a partir de sua fundação mítica por Rômulo e Remo em 753 A. C. (referência que, é bom que se diga, não existia nessa época, dado que a entrada conquistadora do nascimento de Cristo na periodização cristã só data de Denis, o Pequeno, no século VI). Outras características garantiram à Itália um lugar particular na história medieval: sua conquista pelos lombardos, e depois por Carlos Magno; a presença em Roma do papa, chefe da Igreja cristã, mas também dos Estados pontifícios; o regime da “comuna” numa Europa dominada pela monarquia; a importância do comércio (principalmente com o Oriente) e da arte. Encontraremos essa especificidade italiana na emergência do termo “Renascimento”.
A segunda observação diz respeito à passagem entre o que se chama de “Antiguidade” e a “Idade Média”. Durante muito tempo se fez corresponder o fim da Antiguidade com a conversão do imperador Constantino ao cristianismo (Édito de Milão, 313) ou com a remissão ao imperador de Bizâncio das insígnias imperiais ocidentais (476). Porém, vários historiadores enfatizaram que a transformação de uma época a outra foi longa, progressiva, cheia de sobreposições. Foi então proposta a ideia de que não se podia fixar uma data de ruptura clara entre ambas. A abordagem que prevalece em nossos dias é a de uma mutação que teria durado do século III ao VII e, seguindo o modelo dos historiadores alemães que primeiro definiram o termo Spätantike, esse período recebeu o nome de “Antiguidade tardia.”
Outro tipo de ruptura periódica é observada entre os marxistas, ligada à transformação das forças de produção. O exemplo que frequentemente é lembrado merece ser citado a título metodológico. Ele encontra sua fonte num artigo escrito pelo historiador da Idade Média, Ernst Werner, que vivia na RDA no tempo da divisão da Alemanha e que, se não era membro do Partido, havia adotado a visão marxista da história. Para ele, a passagem da Antiguidade para a Idade Média corresponde à da escravidão à feudalidade. Não me deterei nessa questão porque não acho pertinente o termo “feudalidade”. Contudo, este acabou por substituir o termo “Idade Média”, sendo que o feudo se tornou, para os juristas do século XVIII, o tipo de posse de uma terra no sistema medieval. Não obstante, o termo não expressa nem a riqueza, nem as transformações, nem o caráter social e cultural desse período. Parece-me que, no decorrer da história, “Idade Média” livrou-se de seu sentido pejorativo: é cômodo continuar a usá-lo, então vamos conservá-lo.
Veremos, por fim, ao final de meu ensaio de demonstração da existência de uma longa Idade Média e da inaceitabilidade do Renascimento como período específico, os novos horizontes que oferecem ao estudo da história as perspectivas abertas, por exemplo, por Georges Duby, em Histoire continue, e sobretudo por Fernand Braudel, no que concerne à longa duração.
É preciso rememorar um momento essencial na periodização da história: a transformação do gênero histórico, como narrativa e moral, em ramo do saber, disciplina profissional e, sobretudo, matéria de ensino.
*Trecho extraídos das páginas 26 a 32.