sexta-feira, 21 de agosto de 2015
Elegia erótica romana
Este ensaio apresenta a elegia erótica romana a partir da perspectiva de um hipotético leitor contemporâneo, habituado à televisão, às modas políticas e aos clássicos instantâneos. Nele, Paul Veyne analisa o contraste entre a moderna sinceridade e o artifício latino, entre a intensidade atual e o desengajamento do passado. Traduzido por Mariana Echalar, o livro estará nas livrarias no início de setembro. Confira, abaixo, trecho inédito da obra.
*Ainda este ano lançamos um clássico de Paul Veyne, a obra Pão e circo.
A má sociedade*
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Esses poetas antigos ainda podem ser lidos atualmente? |
É historicamente impossível e esteticamente absurdo identificar as amadas dos elegíacos; isso seria até prejudicial à compreensão da obra, porque eles não cantam uma ligação amorosa em particular, mas a vida amorosa em si. Ao contrário de certos românticos, Propércio faz como os trovadores e os petrarquistas; ele não celebra Hóstia, que muito provavelmente foi uma de suas amantes, mas cria uma mitologia erótica. Dizer que, com isso, ele sublimou ou estilizou sua “experiência” é contentar-se com palavras vazias: Propércio pôde inventar tanto quanto experimentar, e sobretudo em seus versos, essa emoção amorosa, nas raras vezes em que existe, vem dessa sua mitologia e não da lembrança de suas possíveis aflições de mal-amado. Mitologia do amor livre idealizado, em que as cortesãs se tornam egérias que amam os poetas por seus versos, em que a dureza de mulheres venais se torna crueldade de mulher fatal, em que a escolha que elas fazem todas as noites entre os postulantes torna-se capricho de soberana. Falar da sinceridade do nosso poeta teve a sua utilidade, na época ainda recente em que a pesquisa das fontes ou a identificação dos lugares-comuns levavam a melhor sobre o estudo da originalidade literária; tornou-se inútil quando “sinceridade” deixou de rimar com “originalidade”, e isso obrigou certa criação a fazer voos rasantes. Onde já se viu a sinceridade ser uma qualidade estética? Para acreditar nisso, é preciso gostar mais dos mexericos, ou melhor, da psicologia, do que do sentido literário.
Mas “sinceridade” tem também o mérito de rimar com uma ideia bem mais interessante, a da seriedade do imaginário, e, em mãos autorizadas, traduz a impressão de que a elegia não era um jogo fútil; mas a elegia não precisa repousar sobre um fundo de realidade para ter peso, e o oceano das palavras também tem sua verdade, tanto quanto a terra firme tem a dela. Infelizmente, um detalhe complica as coisas: existiu realmente em Roma um demi-monde de costumes galantes, uma vida de prazeres da qual a elegia parece ser a representação; Griffin tinha toda a razão quando reafirmou a realidade dessa má sociedade, como veremos em breve. Nossos poetas provavelmente viveram nesse meio (de sua parte, Ovídio confessou); seus versos o enaltecem indiretamente e tratam como brincadeira coisas que chocariam um moralista sério; Propércio chega ao ponto de fazer a apologia dessa sociedade e, dessa vez, sem traço de humor. Mas saber se a elegia que retrata essa sociedade é a representação dela é uma questão muito diferente: o que decide isso não é o que é retratado, mas como e por que é retratado; senão, uma pastoral e um romance de costumes poderiam ser literariamente a mesma coisa. Os elegíacos não fazem uma mimese desse mundo de gente de reputação duvidosa; eles criam um dobrete fantasioso e humorístico, com finalidades estéticas que não são o prazer da mimese. Teremos certeza disso se dermos uma olhada na realidade e examinarmos todas as lindas “transviadas” de dois milênios atrás: descobriremos entre elas as irmãs mortais de Délia ou Cíntia? O que descobriremos, em todo caso, é como o paganismo era pudico e, no entanto, como os costumes dos velhos romanos eram pouco severos.
Certa vez, Cícero foi convidado para jantar na casa de um bom vivante acabou em companhia tal que não conseguiu conter a impaciência até o fim do jantar: ele tinha uma notícia quente nas mãos. Pegando suas tabuinhas, escreveu a um correspondente capaz de apreciar a novidade:
Estou à mesa, o jantar mal começou, e te rabisco estas palavras. Onde estou? Na casa de Volúmnio Eutrapelo, mas espera a continuação: ao lado dele, está Volúmnia Cíteris! Vais pensar: Cícero em companhia semelhante, esse Cícero em quem todos têm os olhos pregados... Juro que não pensei um segundo que ela fosse estar presente. Outro que eu responderia também, como um dos amantes de Laís: “Laís é minha, eu não sou dela”; mas esse tipo de coisa nunca me atraiu, nem quando eu era mais novo; agora que sou um velho...
Essa Cíteris, tão comprometedora para um senador, era uma atriz famosa e, como muitas de suas colegas, uma antiga escrava; ela fazia as delícias de certo meio mundano, boêmio, cultivado; ela foi amante de Antônio, na época de suas primeiras vitórias, e depois de Cornélio Galo, outro mestre do Egito, além de poeta elegíaco; ele cantará uma tal Lícoris, que qualquer leitor poderia identificar como Cíteris; as areias do Egito revelaram alguns fragmentos de elegias de Galo sobre sua Lícoris ideal. O leitor deve ter reparado que Cícero parece considerar que a tal atriz é uma cortesã, e que isso torna sua companhia comprometedora; explicaremos isso no momento oportuno.
Uma cortesã, uma ex-escrava. Durante muito tempo, os estudiosos se perguntaram se Cíntia, Délia ou Corina eram cortesãs ou libertas. Hoje sabemos que a má sociedade não se limitava a essas categorias derivativas; e mais: os critérios de marginalidade não eram os da nossa moral e são bastante complicados. O interesse histórico desse capítulo da história anedótica reside nisso. Versos de Ovídio no exílio são a origem do erro e também a solução do problema.

A própria neta do imperador reinante, Júlia, tinha um comportamento intolerável para uma família que queria se dar ares de dinastia; mas ela apenas imitava modestamente o mau comportamento da mãe e, como ela, conheceu a rigidez do imperador. Ovídio, um dos parentes, foi envolvido na desgraça de Júlia e exilado no litoral do Mar Negro. Jérôme Carcopino, que nasceu finório e cuja malícia nem se conta mais, inventou que Ovídio era pitagórico e isso era grave; na verdade, Ovídio foi envolvido, de forma subalterna, num escândalo qualquer da corte (podemos imaginar, para dar a dimensão do crime, que Júlia organizou uma espécie de carnaval folclórico em seus aposentos, no qual ridicularizava a figura de seu augusto avô). Ovídio, no exílio, cansou de repetir em versos que não fez nada, mas seus olhos eram culpados de ver o que é imperdoável ver; até a sua morte, tentou conseguir seu perdão e, para isso, fingiu acreditar que seu verdadeiro crime, mais perdoável, foi ter cantado o amor leviano; pela absolvição, defendeu que esse amor, apesar de leviano, não era ilegal.
Quais amores não eram ilegais? O governo imperial acabara de decretar normas revolucionárias nessa matéria: o adultério da esposa, assim como de seu cúmplice, seria punido com severidade, e as relações fora do casamento com uma vidua (uma mulher sem homem: viúva ou divorciada) seriam punidas como “estupro”. Na Antiguidade, o legislador estava preparado para mudar a sociedade por decreto: a lei era feita para não estar nem muito à frente nem muito atrás dos costumes. O legislador podia mudar uma sociedade, porque ele também constituía as sociedades: a vida social existia porque um legislador havia fundado uma cidade. A sociedade não sobreviveria por si mesma, por uma sociabilidade natural ou por uma mão invisível que conciliasse os egoísmos: o homem, que cai em decadência quando a lei não estabelece a disciplina, é um malandro que só estuda sob a palmatória do mestre. De tempos em tempos, vinha uma lei para tirar do buraco uma cidade que tinha caído bem baixo, e ela não hesitava em agir de forma drástica, já que supostamente não inovava, apenas punha de novo nos eixos; primeiro os cidadãos se submetiam docilmente, do mesmo jeito que nos submetemos às boas resoluções que tomamos; Cícero obedece piamente a uma lei capaz de salvar Roma da decadência: ela proibia gastos excessivos com comidas finas. E, como toda boa resolução, a lei era esquecida, exceto quando um estabanado a trazia à tona, em vez de desrespeitá-la em silêncio.
Ovídio tinha de provar que não fora contra as novas leis em seus poemas eróticos.
Ele devia garantir categoricamente que os conselhos em versos que dera aos sedutores não eram, como ele os concebera, para serem usados contra a virtude de matronas, casadas ou sem marido, mas apenas com mulheres venais, que não eram punidas pela lei. Porque, no fim das contas, nos termos da nova legislação, o amor livre, fora do círculo da família, aquele que não se fazia com a esposa ou com as próprias escravas ou libertas, só era tolerado com prostitutas ou, salvo exceção, com libertas não casadas; toda aquela que não fosse mulher da vida ou ex-escrava não casada devia ser respeitada e era denominada matrona; mulheres casadas, viúvas e divorciadas eram matronas e deviam usar vestidos longos ou stola, para indicar que eram intocáveis; nem me atrevo a citar as virgens nascidas livres, mais intocáveis ainda, se é que isso era possível. Era proibido fazer amor com qualquer mulher nascida livre e com qualquer mulher casada, nascida livre ou não.
*Trecho extraído das páginas 121 a 127.