quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Habermas: pauperismo do trabalho alienado
encontra reflexo no pauperismo de
um tempo livre alienado
Leia abaixo trecho inédito de Teoria e Práxis, de Jürgen Habermas. O filósofo analisa aqui, como, com a modernidade, o padrão da técnica e da ciência passa a interferir nos critérios de interação social próprios do âmbito prático da vida. A obra chega no início de dezembro às livrarias
"[Além disso,] em países de capitalismo avançado, o padrão de vida se elevou tanto, incluindo também amplas camadas da população, que o interesse na emancipação da sociedade não pode mais ser imediatamente articulado em expressões econômicas. A “alienação” perdeu a forma economicamente evidente da miséria. O pauperismo do trabalho alienado encontra seu reflexo mais distante, contudo, no pauperismo de um tempo livre alienado – escorbuto e raquitismo conservam-se nos distúrbios psicossomáticos, fome e sacrifício no vazio do encorajamento alheiamente controlado, na satisfação das necessidades que não são as “suas próprias”, conservam sua forma sublimada e não específica de classes. As “frustrações” se tornaram mais furtivas, mas talvez nunca tão corrosivas quanto agora. Do mesmo modo, a dominação, na qualidade de reverso da alienação, atualmente não se exprime mais nas relações de poder concretizadas pelo trabalho assalariado. Na medida em que o status tanto econômico quanto político dos “servidores” é assegurado, as relações de dominação pessoal passam a se submeter à coerção anônima do controle indireto – em âmbitos crescentes da vida social, as orientações perdem sua forma de comando e, por via da manipulação técnico-social, são traduzidas de tal modo que aqueles que se mantêm obedientes e são bem integrados podem fazer com consciência de sua liberdade exatamente aquilo que deveriam fazer.
Sob essas relações, o portador designado de uma futura revolução socialista, o proletariado, dissolveu-se enquanto proletariado. É verdade que a massa da população, avaliada de acordo com sua posição objetiva no processo de produção, é “proletária”; ela não tem poder algum de disposição real sobre os meios de produção. A esse respeito, também o chamado capitalismo popular não modificou nada; segundo a situação presente da concentração e centralização do capital, um controle, por assim dizer, democrático que adota uma forma apolítica, ou seja, sobre a base persistente da propriedade privada, deve ser avaliado como pouco promissor. Por outro lado, a exclusão da disposição sobre os meios de produção não está mais ligada à privação de compensações sociais (renda, segurança, educação etc.) de modo que essa situação objetiva também tivesse de ser experimentada subjetivamente, de certa maneira, como proletária. Uma consciência de classe, que um dia foi revolucionária, hoje também não é verificada nem nas camadas nucleares da classe trabalhadora. Sob tais condições, toda teoria revolucionária carece de seu destinatário; por isso, os argumentos não podem mais ser transpostos em propagandas. À cabeça da crítica, mesmo que ainda existisse, falta o coração; assim, Marx teria hoje de abandonar a esperança de que também a teoria se transformaria em poder material logo que atingisse as massas. Contudo, a luta de classes contida no âmbito interno nacional se reproduz no âmbito internacional entre os “blocos” capitalista e socialista.
A Revolução Russa e o estabelecimento do sistema soviético, finalmente, constituem o fato que mais paralisou a discussão sistemática do marxismo e com o marxismo. O movimento antifeudalista – desencadeado por um proletariado fraco e levado a cabo por uma massa de campesinos pequeno-burgueses e pré-burgueses –, que, sob o regime de revolucionários profissionais protegidos por Lênin, em outubro de 1917, liquidou a dupla dominação do Parlamento e dos sovietes, não tinha imediatamente quaisquer fins socialistas. Mas ele fundamentou uma dominação de funcionários e de quadros, sob a qual Stálin, uma década depois, com a coletivização da economia agrária, pôde conduzir de maneira burocrática uma revolução socialista a partir de cima. Saindo da guerra contra o fascismo na qualidade de uma potência mundial, o marxismo soviético constrange as potências organizadas sobre uma base capitalista, as quais dominam o mundo ocidental sob sua vigília, a assegurar a estabilidade de seu sistema. O controle obrigatório sobre outros âmbitos sociais produziram, por seu turno, formas de organização da proteção das posições sociais e do equilíbrio das compensações sociais, um tipo de reforma institucional duradoura que parecia tornar possível uma autorregulação do capitalismo em virtude das forças da “autodisciplina”; a palavra-chave para esse desenvolvimento foi cunhada nos EUA: new capitalism. Diante disso, a via soviética do socialismo parece se recomendar apenas como um método de industrialização acelerada para países em desenvolvimento, que, longe de ser a realização de uma sociedade verdadeiramente emancipada, em certos momentos reconduziu, na contramão das conquistas constitucionais do capitalismo, a um terror legal de uma ditadura do proletariado. Certamente, a União Soviética conseguiu aumentar suas forças produtivas a tempo de lhe permitir uma concorrência pacífica pelo melhoramento do padrão de vida sob o slogan “alcançar e superar”. Por isso, também a estrutura social e o aparelho de dominação são afetados em longo prazo de tal modo que não está excluída uma aproximação entre os dois sistemas pelo viés mediador uma democracia de massas delineada pelo Estado de bem-estar social. Os perigos de uma sociedade que “se sente bem na alienação”, ou melhor, no bem- -estar estimulado por uma alienação higienicamente perfeccionista cujo aguilhão é recalcado completa e permanentemente da consciência, perigos que se refletem na imagem caricatural das utopias negativas de tipo “brave new world”, certamente não seriam eliminados. [...]
Extraído do ensaio “Entre filosofia e ciência: marxismo como crítica”, págs. 352 a 355