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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Democracia e representação


Miguel: estudo dos vários "viéses" da representação















Neste livro, que sai até fevereiro, Luis Felipe Miguel discute os desafios colocados ao aprofundamento da democracia. Ele procura compreender a dinâmica da representação política e como ela se liga às diferentes assimetrias presentes na sociedade. Ele escreve: "Trata-se de pensar os vieses da representação, de como ela processa e reproduz as desigualdades existentes; e, neste percurso, de prospectar trilhas para a construção de uma representação democrática, contraface necessária de uma autêntica democracia representativa." Leia este trecho inédito.

“Meu objetivo, neste e no próximo capítulo, é apresentar uma leitura crítica das duas principais correntes da teoria democrática contemporânea – a vertente hegemônica, que descrevo como “elitista”, e a chamada democracia deliberativa.
A vertente hegemônica é, em geral, caracterizada como a “democracia liberal”, mas o rótulo é abrangente demais – afinal, o liberalismo é a base comum de quase toda a teoria política contemporânea.
O conflito potencial entre liberalismo e democracia é um problema teórico (e prático) de primeira grandeza: como compatibilizar o exercício da soberania popular com a preservação de direitos individuais inalienáveis, que se impõem mesmo contra a vontade da maioria? O fato de essa tensão permanecer como central na reflexão política contemporânea denota que, ao menos no plano normativo, não desejamos abrir mão da democracia, nem do liberalismo. Praticamente todas as leituras importantes da democracia, no debate atual, são, em alguma medida, herdeiras do liberalismo.
Até porque, em que pese a tensão descrita no parágrafo anterior, democracia e liberalismo compartilham um entendimento igualitário. Da mesma forma que o ideal democrático incorpora a noção de que todos têm direito igual a participar no processo de tomada de decisão e a ter opiniões e interesses levados em consideração, o ideal liberal se funda numa crença da igual capacidade de cada um buscar o próprio interesse e governar a própria vida. Historicamente, desdobramentos tanto da democracia quanto do liberalismo levaram à redução do âmbito de quem se credenciava a essa igualdade, excluindo grupos de acordo com sexo, raça, classe, orientação sexual e outros; mas o ideal normativo permanecia presente (e pôde ser mobilizado na luta contra essas exclusões).
Assim, o que caracteriza a vertente hegemônica da teoria democrática não é tanto seu caráter liberal, que pouco a diferencia, mas seu caráter elitista. Os regimes democráticos contemporâneos são entendidos e vividos a partir de pressupostos – sobre a natureza humana e sobre a organização das sociedades – emprestados de uma corrente teórica que nasceu para afirmar a impossibilidade das democracias: a chamada “teoria das elites”.
Os fundadores dessa corrente – Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels – não escondiam sua oposição aos movimentos democráticos e socialistas presentes na virada do século XIX para o XX. Sua obra revela a apreensão com a atuação desses movimentos e procura demonstrar que seus objetivos igualitários são ilusórios. Segundo eles, sempre vai haver desigualdade na sociedade, em especial a desigualdade política, isto é, sempre existirá uma minoria dirigente e uma maioria condenada a ser dirigida, o que significaria dizer que a democracia como “governo do povo” seria uma fantasia inatingível. É exatamente essa visão que – sobretudo a partir da teoria de Joseph Schumpeter, publicada nos anos 1940 – se torna a base da tendência dominante da teoria democrática e penetra profundamente na concepção atual sobre a democracia.
O pensamento elitista, na sua feição contemporânea, nasce em oposição às correntes igualitárias da modernidade. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, ergueu-se um importante corpo de reflexão política que afirmava a possibilidade e a necessidade de maior igualdade nas sociedades, expresso em pensadores como Rousseau, Fourier, Proudhon ou Marx, que, de diferentes maneiras, propugnavam uma sociedade equitativa. Mas o fantasma da igualdade não estava encarnado apenas em teorias. Na Europa começava a haver, de fato, uma democratização da vida social, sobretudo desde que a classe operária irrompeu com face própria na cena política, com a Revolução de Fevereiro de 1848, na França. Antigos privilégios foram questionados e perderam sustentação legal. O direito ao voto foi paulatinamente estendido até se alcançar o sufrágio universal masculino. No campo das mentalidades, os indivíduos da plebe passavam a se considerar iguais aos da nobreza, a deferência do povo em relação às classes superiores diminuía. Em suma, as estruturas aristocráticas foram sendo corroídas.
Uma das análises mais perspicazes do processo foi feita por Alexis de Tocqueville, no clássico A democracia na América, cujos dois volumes foram publicados originalmente em 1835 e 1840. Tocqueville não era um simpatizante da igualdade. Ao contrário, como integrante da nobreza francesa e como discípulo de Montesquieu, valorizava o papel “equilibrador” que a aristocracia desempenharia na sociedade. Mas ele via como inevitável o progresso da igualdade, que parecia, segundo a sua famosa expressão, comandado pela própria Providência Divina. Esse avanço era um fato durável, universal, imune à interferência humana. Mesmo medidas voltadas para contê-lo terminavam por auxiliá-lo (Tocqueville, 1992 [1835-40], p.6). Percorrer os Estados Unidos (a América do título), o país onde a igualdade estava mais desenvolvida, era conhecer o futuro da Europa.
Para Tocqueville, “igualdade” e “democracia” são quase sinônimos. Não é possível haver um sem o outro; a igualdade leva necessariamente à democracia. Sem ser democrata, Tocqueville julga necessário aprender a conviver com ela, considerada por ele o regime político do futuro. Não interessa, aqui, discutir a acurácia da descrição que o nobre francês faz dos Estados Unidos do século XIX, um país bem menos igualitário do que ele afirma, a começar pela presença da escravidão, instituição sobre a qual discorre, mas que parece julgar que está “à parte” na sociedade estadunidense. O importante é que A democracia na América apreendeu o movimento de democratização existente no seu tempo e projetou sua irresistível vitória final, num quadro apavorante para aristocratas menos serenos do que seu autor.
É nesse momento, quando a desigualdade é questionada, que se reerguem as vozes dos que afiançam que ela é “natural” e “eterna” – o que talvez seja a definição mais simples do elitismo. No seu sentido corrente, o elitismo pode ser descrito como a crença de que a igualdade social é impossível, de que sempre haverá um grupo naturalmente mais capacitado detentor dos cargos de poder. Não se trata de ideia nova: o sonho de Platão na República, com a divisão de castas (de acordo com a capacidade de cada uma), reflete essa visão, bem como a crença de Aristóteles na existência de “escravos por natureza”. A palavra “natureza” é crucial: para o elitismo, a desigualdade é um fato natural. Isto está na raiz da atração que esse pensamento tem sobre aqueles que ocupam posições de elite. Em vez de estarem nestas posições como fruto do acaso, de contingências ligadas à estrutura da sociedade e aos padrões de dominação nela vigentes, seriam recompensados por seus méritos intrínsecos.
Se uma pessoa pensa que tem acesso a determinados bens materiais ou culturais, inatingíveis para boa parte da população, como uma recompensa por suas qualidades inerentes, isto lhe dá um reconfortante sentimento de superioridade, acompanhado do desprezo pelas que não são tão boas. Ela poderia pensar diferente; que estar na universidade, por exemplo, num país de analfabetos, significa que foi privilegiada por uma série de circunstâncias – e então, em vez da sensação de superioridade, poderia vir um sentimento de responsabilidade social. Mas é muito mais gratificante, para o indivíduo que pertence à elite, olhar para a balconista da loja, para a operária, para a engraxate e pensar “puxa, como sou superior” do que refletir que um pequeno acidente de percurso poderia inverter as posições.”

Extraído do capítulo 1, A democracia elitista, da página 30 até 33.