No entanto, esta não é a versão dominante. A oposição entre ideal e real, entre solidão e socialidade é, normalmente, de outra natureza. De fato, desde o Renascimento, deixamos de associar a “natureza” ao “ideal” e a descobrimos, antes, no que designaremos real. A mudança de perspectiva ocorre, simultaneamente, em teoria política e em psicologia, e os mesmos autores são responsáveis por isso (Maquiavel e Hobbes tornaram-se os emblemas deste pensamento). De acordo com a nova vulgata (embora quase não se trate de uma novidade radical: a sabedoria das nações ensina, há séculos, que o homem é lobo para o homem), somente em aparência, e para concordar com as exigências da moral oficial, o homem se ocupa dos outros; na verdade, ele é um ser puramente egoísta e interessado, para quem os outros homens são apenas rivais e obstáculos. Se ele não estivesse sujeito a poderosas exigências, as da sociedade e as da moral, o homem, ser essencialmente solitário, viveria em guerra perpétua com seus semelhantes, numa busca desenfreada pelo poder. O que Montaigne e La Bruyère consideram um ideal – a autossuficiência e a autarcia – é a realidade do homem, mas trata-se de uma realidade ameaçada. A sociedade e a moral vão contra a natureza humana; elas impõem as regras da vida em comum a um ser essencialmente solitário. Esta concepção do homem, a concepção imoralista, prevaleceu sobre a dos moralistas; e, hoje, é ainda ela que intervém nas teorias psicológicas e políticas mais influentes.
Tendo constatado que o homem é por natureza um ser, ao mesmo tempo, solitário e egoísta, podemos nos engajar em duas direções opostas: combater a natureza ou, ao contrário, exaltá-la. La Rochefoucauld, primeiro grande representante francês desta visão do homem, prefere o combate: a vida em sociedade restringe o apetite imoderado dos homens e lhes impõe o aprendizado da reciprocidade; o ideal social é preferível ao real egoísta. No entanto, quanto à própria natureza humana, La Rochefoucauld não hesita: o homem é dominado pelo amor-próprio (aqui, sinônimo do amor egoísta de si mesmo), ou ainda pelo interesse, termo tomado em sentido amplo, mas sempre limitado à perspectiva do sujeito desejante. Mesmo se julgarmos a polidez e a subserviência como preferíveis à avidez e à arrogância, é necessário começar a abrir os olhos: todos os bons sentimentos aparentes são apenas máscara e disfarce. “Só podemos amar o que nos diz respeito.” “Somente o interesse faz nascer a amizade.” O eu é detestável, acrescenta Pascal, por uma dupla razão: “Ele é injusto em si mesmo, no sentido em que se torna centro de tudo; ele é incômodo aos outros, na medida em que quer sujeitá-los: pois cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros”.
Podemos observar em La Rochefoucauld (ou, antes dele, em Hobbes) o funcionamento de um dispositivo de argumentação que se manterá quase intacto durante séculos. Em um primeiro momento, fazemos como se todas as relações sociais se reportassem a qualidades louváveis, à generosidade, ao amor pelo outro; dito de outra maneira, interpretamos a oposição entre solidão e socialidade como equivalente àquela entre egoísmo e altruísmo, o que é, evidentemente, abusivo. Então, em um segundo momento, tentamos nos desiludir, arrancamos a máscara da virtude. Este gesto é ainda mais convincente a nossos olhos na medida em que parece não ter nada de lisonjeiro (ora, nós nos dizemos inconscientemente, não afirmaríamos uma coisa desagradável a menos que ela fosse verdadeira). Desta forma, tendo rejeitado uma visão por demais generosa do homem, conservamos a ideia de um ser solitário e egoísta. A socialidade é virtuosa, mas a virtude é enganadora; portanto, a verdade é associal. La Rochefoucauld conclui: “Os homens não viveriam muito tempo em sociedade se não enganassem uns aos outros.”; e Pascal: “A união que existe entre os homens é fundada neste logro mútuo.” Acreditamos, sem razão, que os outros desejam o nosso bem; se nos tornássemos lúcidos a sociedade desapareceria!
Mas não ocorreria, aqui, uma demonstração, pelo absurdo, da falsidade das premissas? O julgamento moral, a identificação dos vícios e virtudes, parece ter contaminado a concepção antropológica subjacente. Quando La Rochefoucauld declara que apenas o interesse faz nascer a amizade, ele vê nisto um excesso: sua máxima, ele sugere, com razão, deveria aplicar-se a outras relações, aparentemente menos desinteressadas do que a amizade. Além de insuficiente, tal explicação da amizade submete completamente o outro a meus próprios interesses, tornando seu apego pouco valioso para mim. Mais fundamentalmente, a fórmula de La Rochefoucauld implica a existência de um eu autônomo e interessado, anterior a qualquer vida social, uma espécie de proprietário que aspira apenas à acumulação de riquezas, como se as relações com as pessoas pudessem ser compreendidas pelas referências às relações que nos ligam às coisas. Ora, a relação com o outro não é um produto dos interesses do eu, ela é anterior tanto ao interesse quanto ao eu. Não cabe perguntar, à maneira de Hobbes: por que os homens escolhem viver em sociedade? Ou de Schopenhauer: de onde vem a necessidade de sociedade? Porque os homens nunca efetuam tal passagem à vida em comum: a relação precede o elemento isolado. Eles não vivem em sociedade por interesse, por virtude, ou pela força de qualquer outra razão; fazem-no porque não há para eles outra forma de existência possível.
Encontramos quase a mesma concepção do homem em Kant, grande moralista, mas psicólogo contestável. O antagonismo fundamental da espécie humana reside, de acordo com Kant, em sua “insociável socialidade”, em suas tendências contraditórias de buscar a sociedade e de fugir da mesma. No entanto, se a primeira tendência permite realizar o que há de melhor no homem (ela está do lado do ideal, do destino do gênero humano, é um princípio regulador), a segunda é aquela que nos diz sua verdade interior, sua inclinação natural; “é o caráter insociável que ele tem de fazer tudo apenas de acordo com seu ponto de vista; consequentemente, ele espera resistências de todas as partes e, por seu lado, mostra-se propenso a resistir aos outros”. Do ponto de vista do indivíduo, os outros são apenas rivais ou obstáculos à sua própria ascensão; ele deseja então o desaparecimento dos outros. Os homens ficam dilacerados entre sua aspiração ao poder ilimitado, não partilhado com os outros, e sua incapacidade de se privar da sociedade, resultado de sua fraqueza. “Aquele que só é feliz em função da escolha do outro (em detrimento de toda benevolência deste) sente-se, certamente, infeliz.”
Esta imagem do homem leva Kant a uma interpretação bastante estranha do choro do recém-nascido. Não é uma aspiração natural dos homens manter os outros afastados de si, mesmo se para isso fosse necessário lhes declarar guerra? “E mesmo a criança, diferentemente dos outros animais, mal tendo saído do ventre materno, parece entrar neste mundo chorando por esta única razão; ela considera um obstáculo sua incapacidade de utilizar seus membros e, imediatamente, proclama sua pretensão à liberdade.” Se o recém-nascido chora, não é para pedir o complemento necessário à sua vida e à sua existência, é para protestar contra a sua dependência em relação ao outro: o homem nasce sujeito kantiano aspirando à liberdade!
Quando Kant descreve detalhadamente a paixão humana central, a que conduz o homem a tomar o poder, a dominar os outros, ele distingue três modalidades, de acordo com o objeto ao qual ela se aplica: Ehrsucht, Herrschsucht, Habsucht – sede de honras, sede de dominação, sede de bens (ou cobiça). Mas se esta última variedade inscreve-se no modelo econômico da acumulação, se a segunda compreende todos os seres humanos como servos (ou escravos) potenciais, o mesmo não acontece com a primeira, a febre de honras. O próprio das honras (no plural) é que elas nos devem ser concedidas por outros que não nós mesmos, por aqueles que estão habilitados a fazê-lo; esses outros não podem então ser reduzidos ao papel de rivais ou de obstáculos que, como nós, aspiram às mesmas distinções. O outro é, aqui, ao mesmo tempo, irredutivelmente, diferente de si e complementar. Isso também não acontece em muitas outras relações sociais, de amizade ou de aprendizado, e mesmo na relação do recém-nascido com sua mãe?
La Rochefoucauld também, temendo a extensão excessiva de seu princípio explicativo, apressa-se em precisar, em “Avis au lecteur”, na segunda edição de Maximes [Máximas]: “Pela palavra Interesse nem sempre compreendemos um interesse por bens, mas, mais frequentemente, um interesse por honra e glória”, o que é muito correto, mas que subtrai muito da radicalidade do propósito inicial: se o estímulo principal da atividade humana não é o desejo de bens semelhantes aos bens materiais, à satisfação egoísta, mas a aspiração à glória e às honras, como poderia o homem se privar dos outros, que são seus únicos provedores possíveis? La Rochefoucauld interessa-se apenas por nossas paixões sociais e sugere, no entanto, que o homem essencial e primeiro é um ser solitário: certamente, não podemos nos privar dos outros, mas isso por interesse egoísta. Os casos particulares tratados por La Rochefoucauld assim como por Kant, no entanto, abalam o próprio quadro geral de interpretação – mesmo porque este quadro nunca foi objeto de uma afirmação explícita; sem isso, quem acreditaria que a rivalidade ou a submissão esgotam a variedade das relações humanas?
Se, nesta primeira versão da concepção segundo a qual o homem é um ser egoísta e solitário, nos colocamos do lado da moral (é preciso superar suas inclinações, ensina Kant), numa segunda versão, que data o mais tardar do século XVIII, sugere-se que é melhor calcar o ideal sobre o real, em vez de opor um ao outro; a concepção psicológica do homem não é, no entanto, modificada por esta escolha. Esta será muitas vezes a posição dos enciclopedistas-materialistas, Helvétius, Diderot, d’Holbach e, de maneira mais excessiva, Sade. Helvétius, em De l’esprit, repete, seguindo La Rochefoucauld, que o interesse governa a conduta dos homens – mas, diferentemente de seu predecessor, não deplora tal fato. Diderot, adepto desta doutrina, acrescenta: “O que constitui o homem o que ele é [...] deve fundar a moral que lhe convém”, dito de outra maneira, o ideal deve submeter-se ao real. E Sade conclui: “Não tenham outro freio que não o de suas aspirações, outras leis que não as dos seus desejos, outra moral que não a da natureza.”
Nietzsche é crítico com relação aos seus predecessores dos séculos XVII e XVIII e não deixa de partilhar sua concepção do homem. Ele só sente desprezo por seus contemporâneos burgueses, que esqueceram toda preocupação com a glória e a excelência e se contentam em viver protegidos e saciados; no entanto, seu ideal, o super-homem, é, por sua vez, um ser que aspira à solidão. No lugar do amor-próprio e do egoísmo de La Rochefoucauld encontramos a “moral dos senhores” que contém, em seu cerne, a vontade de poder.
Imagino que todo corpo específico aspire se tornar senhor de todo o espaço e estender sua força (sua vontade de poder), rechaçar tudo o que resiste à sua expansão. Mas ele cede, incessantemente, às aspirações semelhantes de outros corpos e acaba por se associar (se “aliar”) aos que são iguais: eles aspiram juntos conquistar o poder.
O ser humano, não distinto nisto dos outros seres vivos, almeja dominar; os outros, seus semelhantes, são apenas rivais, ou, então, colaboradores, se a tarefa não estiver à altura de um só. Mas os melhores vencem: “Os ricos e os vivos desejam a vitória, os adversários vencidos, a extensão do sentimento de poder sobre novos domínios.”
Nietzsche apresenta uma psicologia estranhamente igualitária: todos os homens são iguais e disputam o mesmo lugar; então, ou eles são meus adversários ou meus colaboradores, ou (em caso de vitória) submissos, meus servos. Tudo se passa como se, sob condição de poder superar os freios que nos impõem uma moral convencional destinada a proteger os fracos, uma moral de cordeiros, nos apressássemos para reinar como senhores solitários. Mas esta é, de fato, a regra da conduta humana? Não haveria o infortúnio do tirano?
O papel que desempenham, aqui, as noções de honra e de glória merece atenção. Na verdade, elas implicam uma referência obrigatória à socialidade e, por outro lado, estão presentes, com frequência, numa reflexão sobre o homem, tanto entre os Antigos quanto entre os Modernos. No entanto, o que também é digno de atenção é o fato de que, apesar da profunda mudança de atitudes com relação a si, o desejo de honras e de glória é sempre considerado facultativo, uma aspiração da qual poderíamos nos privar. Para os Antigos, trata-se de destacar no homem sua melhor parte: Aquiles prefere a morte gloriosa à vida sem brilho. Mas, justamente, esta virtude não está presente em todos, apenas nos melhores: é um ideal, não uma necessidade vital.
Para os Modernos, ao contrário, começando por Hobbes, o desejo de glória e de honras é fonte de nossos males; é preciso aprender a domesticá-lo, a submetê-lo a interesses mais essenciais: a paz social vale mais do que a glória dos heróis. Os filósofos do Iluminismo, Montesquieu, Kant, deplorarão nossa aspiração à glória, esta paixão incontrolável, sobrevivência arcaica do código feudal. Na opinião deles, então, podemos nos privar desse desejo; agora, apenas os melhores obtêm êxito. Esta é a razão pela qual, quando Hobbes ou La Rochefoucauld pregam a boa socialidade como remédio contra nosso egoísmo fundamental, eles não tratam do desejo de glória e de honras, este último tendo passado para o lado das aspirações egoístas das quais é preciso se liberar. Ehrsucht figura apenas na série de Habsucht e Herrschsucht e não é mais do que uma espécie do gênero “interesse egoísta”. (Nietzsche, ao contrário, deplora o declínio moderno da aspiração à glória, prova suplementar da mediocridade propagada pelas novas democracias.) Na época contemporânea, aconselhamos, novamente, de bom grado, o indivíduo a cuidar de suas próprias tarefas, preocupar-se com o seu desenvolvimento interior em vez de se aniquilar numa vã corrida pelo prestígio – como se o eu pudesse existir sem referência ao exterior, como se a vaidade e o egocentrismo partilhassem, sem mais, o campo da intersubjetividade.
*Extraído do primeiro capítulo, Um olhar sobre a história do pensamento (As tradições associais, páginas 15 a 26)