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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

'Cisma' na poesia brasileira*



A partir de novembro a Editora Unesp começa a publicar a Coleção Affonso Romano de Sant’Anna, que reúne textos clássicos, entre ensaios e críticas, assinados pelo autor de Análise estrutural de romances brasileiros (Editora Unesp, 2012). Um dos volumes que saem em novembro contrapõe as obras de João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, partindo dos conceitos poéticos do primeiro. Outro volume traz críticas escritas por Sant’Anna para a revista Veja no começo dos anos 1970, que abordam temas como o Pop fantástico, a obra de Murilo Mendes, o pensamento de Todorov e autores do universo da mídia, como Chico Anísio. O terceiro livro trata da trajetória poética de Sant’Anna e de sua travessia para a crítica literária. O blog reproduz a seguir trecho de Entre Drummond e Cabral.

Tendo que preparar, em 2011, um curso para a Casa do Saber, no Rio de Janeiro, intitulado “Como ler poesia”, voltei a examinar uma série de textos nos quais poetas e teóricos exprimem o que pensam sobre o fazer poético. Relendo autores estrangeiros e nacionais, detenho-me numa famosa conferência que João Cabral fez em 13 de novembro de 1952 na Biblioteca de São Paulo: “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte”. 
Este me parece um texto chave, uma encruzilhada em que a teoria e a prática da poesia brasileira se encontraram depois da experiência modernista de 1922. Mais do que o texto de um autor, é um lugar de passagem, pois Cabral se tornou um expoente de sua geração, uma referência, um modelo. Permitindo-me uma observação bem pessoal, eu diria que passei por aí. Outros passaram por aí. E outros ficaram por ali, enredados. O referido ensaio de João Cabral faz parte de um “cisma” que ocorreu na teoria e na prática da poesia brasileira, o que não se observa na história da poesia de outros países. Instituiu-se (de uma maneira que chega a ser caricata e derrisória, a partir deste obstáculo poético e epistemológico), a certeza de que existe uma poesia que é “boa” porque privilegia a “forma”, e uma outra coisa que é “má”, e talvez nem seja poesia, pois privilegia a “emoção”. Deixando de lado essa mal colocada questão de fundo e forma, vejamos o seguinte:
Sucintamente, eis alguns dos temas básicos levantados naquele texto de João Cabral:
há duas famílias de poetas: os que seguem a inspiração e os que se dedicam ao trabalho;
na modernidade, há uma dispersão, uma fragmentação de poéticas em oposição a uma época passada mais “feliz” em que havia um cânone a ser seguido; 
o autor hoje não escreve para o leitor, mas para si mesmo e seus pares, e a comunicação cede à expressão;
além dessas questões, aquele texto do poeta levanta problemas dos limites entre biografia e poesia, o homem e o artista, o sujeito e sua obra.
Estes são os temas básicos que, lidos assim, talvez não apresentem muita complexidade ou discordância, mas que vistos mais de perto expõem alguns equívocos e problemas que afetaram várias gerações de poetas brasileiros.
Vejamos mais de perto quais os principais argumentos de João Cabral apresentados naquela conferência de 1952. Isto nos levará a considerar aspectos intrigantes para se entender o texto e o contexto literário, o conflito de gerações, a busca de paternidade e filiação literária e, também, a ver brilhantes, porém equivocados enfoques que se abrigam em certas formulações teóricas. Assim se entenderá melhor, por exemplo, a relação entre Cabral e Drummond e até mesmo a complexa aproximação entre o poeta Cabral e o pintor Miró, como também veremos o contraste entre Cabral e os modernistas Manuel Bandeira e Jorge de Lima. 
Isto posto, convenhamos: João Cabral é um poeta excepcional, que se destaca dentro de sua geração e dentro da poesia de língua portuguesa. Sua marca está presente em vários de seus contemporâneos. Contudo, algumas questões se impõem dentro da admiração por sua obra. Claro que logo surge a pergunta: pode-se discordar da teorização feita por um poeta de tão alta qualidade? Até que ponto a teorização revela alguns mal entendidos que permeiam a teoria e prática da poesia entre nós?

Cisão na família literária

João Cabral começa a citada conferência dividindo os poetas em duas famílias: a que trabalha racionalmente e a que pratica certo espontaneísmo. Quem tem intimidade com a obra e o pensamento desse poeta reconhece que ele se coloca do lado do “trabalho”, em oposição à chamada “inspiração”. A conferência em que desdobra sua tese é uma consistente defesa de suas posições, que podem ser conferidas nos poemas em que ele expõe sua “arte poética”, a exemplo de “Psicologia da composição”, “Fábula de Anfion” e “Antiode”. 
Esses poemas são de 1946/47, a conferência é de 1952. Esse é o período em que o poeta reelabora suas diretrizes estéticas distanciando-se dos primeiros modelos, sejam eles o surrealismo de Murilo Mendes ou a poesia mais objetiva e irônica de Drummond.
Ao dividir os poetas em duas “famílias”, os que “fazem” poesia e os que a “recebem pronta”, ele não apenas toma lugar na primeira delas, mas vê a segunda família de poetas sempre de uma maneira pejorativa. Isto não teria nada demais, cada autor tem suas preferências e facilidades estilísticas conforme sua personalidade, mas no caso de Cabral há algo especial, pois ele se tornou um autor paradigmático cujo pensamento e obra influenciaram o debate da poesia, e é nesse sentido que sempre é saudável para a história da cultura a revisão dos paradigmas e exemplos.
Alguém relendo o texto de João Cabral pode alegar que nos parágrafos 10 e 11 daquela conferência ele nega, diplomaticamente, tal oposição. Com efeito, estrategicamente, ele parece apagar a divisão que vinha fazendo diplomática e conciliadoramente. Chega a admitir que “essencialmente essas duas maneiras de fazer não se opõem”, pois o que importa é que ambas são “conquistas de homem”,
mas logo se recupera e retoma o veio central de seu discurso, que é a valorização do “trabalho” em oposição ao que chama de “inspiração”.

*Texto extraído das páginas 9 a 14