quarta-feira, 30 de abril de 2014
Ferroadas históricas
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Patrocínio: comunicação pelo sarcasmo |
Para o periódico satírico Os Ferrões, que circulou em 1875, o Brasil era a nota destoante naquele século de mudanças. Em suas páginas, José do Patrocínio e Demerval da Fonseca, os dois jovens jornalistas que o fundaram, se colocaram frontalmente contra o ultramontanismo, para eles contrário à “civilização moderna”, que exigia “Igreja livre em um Estado livre”. De outro lado, defenderam o casamento civil, o ensino laico, o fim da escravidão dos negros, a livre expressão. As contendas religiosas dominaram a cobertura do jornal, que, no entanto, não poupou de “ferroadas” nem o imperador D. Pedro II, e deixou um manancial de informações de caráter histórico e social sobre o Brasil – e o mundo – no período do Segundo Reinado. A obra Os Ferrões, organizada por José Leonardo do Nascimento, reproduz integralmente todas as dez edições do jornal. Confira um trecho*:
Tivemos nesta última quinzena um fato que nos impressionou: três assinantes devolveram os Ferrões desde o primeiro número, o que quer dizer, despediram‑se.
Esses três assinantes procederam por este modo suspeitamos que por espírito de bairrismo: são baianos.
Ora, nós julgamos que a Bahia tem razão de queixa de todo o mundo, mas dos Ferrões com certeza não tem.
Nós somos isto: francos, sinceros, amáveis e sobretudo verdadeiros. Se ofensa é dizer‑se francamente, sinceramente, amavelmente e sobretudo verdadeiramente à Bahia que ela andou mal, então… oras adeus.
Nós não pensávamos que a Bahia fosse tão paulista; desconfia à toa. É fato que nós lhe dissemos certas verdades que não eram muito agradáveis de se ouvir, mas que em todo caso eram verdades, e dizendo‑as julgamos cumprir um dever.
Tratava‑ se de uma pequena questão? tratava‑se de um fato que não interessa geralmente?
Creia a Bahia que se nós a surpreendermos pelos cantos, a meter a ponta dos fura‑ bolos pelo nariz, nós lhe diremos particularmente: deixe‑se disso; se a encontrarmos praticando atos ofensivos à moral, dir‑lhe‑emos ao ouvido: contenha‑ se; se a surpreendermos em fraldas de camisa avisá‑la‑emos; mas à puridade, em família.
Porém, vê‑la dar‑se a um tristíssimo espetáculo ao mundo inteiro, vê‑la patentear publicamente os seus maus instintos, a sua má índole, e sobretudo os seus arreganhos intempestivos e ficarmos em silêncio, isso tenha paciência a Bahia, os baianos, e os nossos três assinantes zangados – não o fazemos, não o queremos fazer.
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Depois, embora forcemos a nossa modéstia, sempre diremos à Bahia que nós fomos imensamente delicados com ela quando lhe escrevemos a epístola em que, como irmãos, lhe dávamos conselhos razoáveis.
Diga‑nos cá; como se deve qualificar o procedimento dos baianos quando atiraram pedras e garrafas ao comandante Frias Villar, arrancaram‑lhe do peito as condecorações que tinha ganho nos campos de batalha, expondo denodadamente a sua vida em favor da pátria e por conseguinte também pela Bahia, que para se mostrar mais do que ingrata – cruel, tomou essas mesmas condecorações e pendurou‑as grosseiramente ao peito de um moleque? Como se deve qualificar o procedimento dos que lhe subtraíram do bolso o relógio e 800$000?
Nós cremos que como brasileiros temos o direito de dizer à Bahia que ela não pode, não deve manchar a reputação de patriotismo e civilização do Brasil, porque ela também é nossa.
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O que dissemos acima entende‑se especialmente como o motivo que levou os três assinantes a nos devolverem os Ferrões.
Dissemos e repetimos, é um espírito de bairrismo mal entendido e muito fora de propósito.
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Agora examinemos o modo por que manifestaram o seu descontentamento os três srs. que se julgaram feridos em seu orgulho.
É regular o procedimento desses srs. enviando‑nos ao cabo de três meses os números dos Ferrões sem uma palavra, sem ao menos o importe da assinatura – que voluntariamente tomaram?
Cremos que não: esses srs. estão mal conosco, deixem de ler‑nos; mas nós não estamos mal com eles, queremos o que nos é devido.
Além disso, os folhetos vieram em tão mau estado que nós queremos crer que foram propositalmente esfregados ao chão, tão sujos estão eles.
Ora, pondo de parte o que aí vai de cômico, a nossa gaveta não guarda papéis sujos e portanto nós os reenviamos aos seus donos, para que façam deles o uso que melhor lhes convier.
Não nos faltava mais nada, nem podia haver coisa melhor do que terem em seu poder durante muito tempo os nossos folhetos, emprestarem‑nos a seus amigos, recomendarem um pedacinho – muito bom, e depois no dia em que se diz lá à sua Bahia – isso é feio, arrepelam‑se, rasgam‑se e… e não queremos mais; tomam os folhetos, os recambiam no estado em que estiverem.
Alto lá: isto aqui não é roupa que se veste e depois de suja atira‑se para o canto; se estão com raiva de nós, descomponham‑nos, xinguem-nos, joguem fora os folhetos, mas não façam a caturrice de os recambiar depois de muito lidos e ainda mais – sujos; o que lhes garantimos é que com esse procedimento não nos fazem zangar, fazem‑nos rir.
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Para terminar um conselho aos tais srs., que tanta raiva têm de nós.
Querem vingar‑se completamente da ofensa que lhes fizemos ao melindre? Façam como nós quando temos raiva do Correio:
Tirem as calças e pisem os cós.
*Extraído das páginas 181 a 183