quinta-feira, 31 de outubro de 2013
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Finazzi-Agrò: olhar freudiano para a antropofagia modernista |

Leia, abaixo, trecho inédito de Entretempos - mapeando a história da cultura brasileira, do pesquisador italiano Ettore Finazzi-Agrò, que chega no fim de novembro às livrarias:
"[...] Relendo, de fato, o famoso texto de Freud "Luto e melancolia", deparei com a relação que ele estabeleceu (na esteira de Karl Abraham) entre essa doença saturnina e “a fase oral ou canibalesca da evolução da libido”, isto é, com o período em que o Eu tenta incorporar o objeto desejado devorando-o. Naquela altura, eu já tinha, por um lado, a confusa pretensão de repensar o Modernismo paulista em uma óptica “econômica” e, por outro, eu estava relendo, para a minha aula, o Retrato do Brasil e os outros clássicos de interpretação da nação publicados pouco depois dele. Nessa conjuntura, a interpretação freudiana da melancolia calhava de modo inesperado, redistribuindo, de forma totalmente nova, os dados da questão colocada pelos modernistas. Que eu saiba, com efeito, muitos apontaram para o papel desempenhado por Paulo Prado não só na organização da Semana, mas, mais em geral, na construção e no apoio ao movimento intelectual e artístico paulista. O que sempre ficou na sombra, o que ficou substancialmente não dito foi o modo como funciona a proposta de uma leitura “melancólica” do Brasil, avançada pelo ilustre cafeicultor, dentro do panorama substancialmente eufórico da época.
No mesmo ano-chave de 1928 foram publicados, como se sabe, por um lado, o Manifesto antropófago e Martim Cererê e, por outro, Macunaíma e, justamente, Retrato do Brasil: o problema é saber, de saída, de que modo esses textos germinais funcionam e interagem entre si, isto é, se é enfim legítimo agrupá-los e distanciá-los como eu fiz, colocando-os em lugares distintos, desenhando, em boa medida, um paradigma textual. Nessa perspectiva, a leitura de Freud consegue embaralhar as cartas do imaginário modernista, apontando para um elemento que junta todos esses textos (e muitos outros) em outra constelação de sentido, que não tem apenas a ver com a reafirmação polimorfa da identidade nacional (identidade triste e resignada em Paulo Prado, alegre e agressiva em Oswald, mestiça em Cassiano Ricardo, plural e, ao mesmo tempo, ausente em Mário), mas que projeta a questão identitária na sua relação complexa com a alteridade.
Com efeito – e não sem algum embaraço –, Freud aponta para uma diferença importante entre o luto e a melancolia, visto que a segunda denuncia uma perda, “mas sem que se consiga saber claramente o que se perdeu” [...].
O outro, na impossibilidade de ser alcançado no plano real, se torna, então, o objeto recalcado do desejo: um fantasma alimentando, por isso, a fantasia de uma apropriação que só pode ser realizada na assimilação – no canibalismo, enfim, destruindo e, ao mesmo tempo, incorporando aquilo que se deseja. Nesse sentido, não por acaso Freud incluía entre os casos de excesso de humor negro da sua época os atos de antropofagia constelando as crônicas dos jornais europeus e os boletins de psiquiatria legal dos finais do século XIX. Na análise do intercâmbio cultural entre o Brasil modernista e a Europa das vanguardas devemos, a meu ver, sempre ter em conta esse unilateralismo do desejo, construindo um fetiche (um totem, na terminologia de Freud utilizada pelo escritor brasileiro) do ausente e do barrado (do tabu, sempre no reuso, feito por Oswald, do vocabulário freudiano), que ou pode ser incorporado através do ato canibalesco, ou permanecer no seu estado de latência, de objeto inalcançável, produzindo, por isso, aquela dobra melancólica que atravessa os anos 1920 (e se prolonga no começo da década seguinte), cruzando-se, aliás, com a euforização da ausência e com a exaltação da mestiçagem. Nessa constelação de sentidos heterogêneos, nada fica, obviamente, estável, mas tudo balança e muda de posição dentro de um paradigma de relações momentâneas e plurais em que o nexo entre identidade e diferença se transforma em novelo, em trama emaranhada da qual é impossível extrair um significado uno e irreversível, que não seja, justamente, a organização arlequinal do sujeito de que nos fala Mário na sua primeira produção poética."