segunda-feira, 28 de outubro de 2013
Vladimir Safatle
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Foto: Reuters
Holande deporta emigrados de região invadida por exércitos europeus |
Com a pauta do xenófobo Front National abraçada por todos os demais partidos, o eleitor francês parece estar optando pela matriz daqueles ideais: pesquisas indicam que nas eleições para o Parlamento europeu a agremiação de Le Pen será a mais votada, com 24% dos votos
É possível que tenha começado em 2002. Era o ano de eleições presidenciais na França e tudo levava a crer que teríamos um embate clássico entre a direita gaullista (Jacques Chirac) e a social-democracia (Lionel Jospin). Mas os resultados finais mostraram outra coisa. Jean-Marie Le Pen, líder da extrema-direita racista e xenófoba, passara para o segundo turno e deixara a esquerda fora do pleito. A votação de Chirac no segundo turno foi “soviética”, mas isso não importava mais. No fundo, Le Pen havia ganhado a eleição. Ele não tinha conquistado o governo, mas vencera. Pois, a partir de então, ele seria incontornável, suas pautas paulatinamente também seriam assumidas por todos. A agenda política estava em suas mãos. Bastaram apenas alguns anos para o diagnóstico mostrar-se verdadeiro. Aos poucos, a direita tradicional começou o grande torneio medieval de caça aos ciganos, a retomada da luta milenar contra a islamização da França, a insistir nos grandes feitos da colonização francesa na África e nos valores superiores da civilização ocidental.
Então veio Nicolas Sarkozy. Eu estava na França no dia de sua vitória. Era possível ouvir um silêncio ensurdecedor entrecortado apenas pelas sirenes constantes da polícia. Os jovens da periferia queimavam carros. De fato, era estranho pensar que um novo presidente era saudado com automóveis incendiados e depredações. Esta era, no entanto, a expressão imediata da consciência de que os filhos de imigrantes teriam nos próximos anos uma vida infernal, com direito ao aumento da discriminação, ao desprezo cultural e até mesmo a discussões sobre a perda de nacionalidade (algo que lembrava a estrutura jurídica da Alemanha nazista).
Infindáveis vezes nestes anos levantaram-se os clamores sobre a dificuldade de integração dessas massas ignaras aos valores ocidentais, mas raras foram as vezes nas quais alguém resolveu contar quantos filhos de imigrantes compunham a Assembleia Nacional francesa. Antes da última eleição legislativa, existiam apenas dois descendentes de árabes em um Parlamento de 577 integrantes, apesar de eles representarem atualmente 10% da população. Difícil exigir integração quando não se tem partilha de poder. Assim, enquanto a Europa quebrava graças aos generosos suportes financeiros dados a bancos privados com comportamento criminoso, enquanto as instituições financeiras pagavam bônus milionários a seus executivos com dinheiro do Estado, a boa e velha caça ao imigrante começava. Difícil não se lembrar de uma frase precisa de Lula a esse respeito: “Quem quebrou a Europa foram os banqueiros brancos de olhos azuis, não os imigrantes”.
Quando a era Sarkozy morreu de inanição, com a economia francesa sem capacidade de reação, ninguém esperava uma reinvenção da República. François Hollande, como ele mesmo dissera a financistas da City londrina, “não era perigoso”. Esperava-se, ao menos, uma política mais combativa contra tais derivas socioculturais racistas. Já era tarde, porém. O Front National, agora repaginado por uma nova líder, Marine Le Pen, comandava a agenda política. Assim, durante um ano de governo Hollande, o ministro do Interior, Manuel Valls, continuou a ínclita batalha contra os ciganos, os mesmos a quem a Europa teria o dever moral de acolher, por terem sido vítimas, a exemplo dos judeus, de uma política de genocídio no período nazista. Neste caso específico, o continente nunca fez um esforço de memória e um mea-culpa.
Toda semana, lá estava o ministro do Interior de Hollande a repetir as mesmas palavras, os mesmos gestos fortes, a pedir o abandono de todo angelismo esquerdista, tal qual seus antecessores de direita. O último capítulo dessa longa história encerrou-se quando sua polícia deportou uma família kosovar e prendeu uma das filhas na saída da escola diante de seus colegas, ou seja, uma família emigrada de uma região invadida por forças militares europeias, cujo primeiro administrador foi um francês (Bernard Kouchner) e que teria, ao menos por esse fato, direito a uma política generosa de asilo.
Segundo as pesquisas, dois terços da população francesa apoia a ação do ministro. Não por outra razão, levantamentos sobre as eleições para o Parlamento europeu indicam que o Front National é hoje o primeiro partido, com 24% dos votos. Natural: uma hora, os eleitores acham melhor escolher o original do que as cópias.
Artigo publicado originalmente no site da revista Carta Capital em 28/10/2013.