quinta-feira, 3 de outubro de 2013
Maria Lúcia Pallares-Burke
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Foto: Omar Júnior As cidades falam por meio de sinais, como seus palácios, arcos e catedrais |
Neste artigo, exclusivo, a autora perpassa o tema que aborda em palestra no Expoideia, que acontece em Recife dia 20 de outubro. Ela conta que, somente depois de propor o “urbanismo inteligente”, inspirado em sua cidade natal, o sociólogo desvencilha-se do preconceito e passa a valorizar as tradições também da africanidade e da mestiçagem brasileiras
Se alguns grandes escritores são cosmopolitas e até mesmo universais, pois não se identificam com qualquer lugar específico e tratam de questões que dizem respeito ao ser humano em geral – como Shakespeare e Kafka – muitos outros estão profundamente envolvidos com sua região natal ou mesmo com sua cidade de origem, quer eles a amem e/ou a odeiem.
No caso de Freyre, pode-se dizer que seu relacionamento com Recife era muito próximo, e que ele tinha interesse e amor profundos por sua cidade. Um ensaio de Chesterton, um dos escritores ingleses favoritos de Freyre, capta muito bem a importância que seu afastamento do país teve para que ele descobrisse, lá fora, sua forte ligação com o lugar onde nasceu.
Chesterton conta que estava em seu apartamento no bairro de Battersea em Londres fazendo malas para viajar quando um amigo chega e pergunta: “Para onde você vai?”. Ao que ele responde: “Para Battersea”, explicando ao amigo intrigado que, para chegar onde já se encontrava, precisava perambular pelo mundo.
Quando Freyre publica, em 1934, seu Guia Prático, histórico e Sentimental da Cidade do Recife – algo aparentemente inédito vindo de um escritor de sua envergadura – fica claro que se tratava do trabalho de um apaixonado pela cidade, orgulhoso de suas modernidades – como o abastecimento de água e seus hospitais – e devotado a ajudar o visitante a se deixar seduzir por uma cidade que, por si mesma, não era atraente de imediato.
Daí o livro que buscava prover os visitantes com dados que não achariam facilmente em outro lugar; dados que vão desde curiosidades históricas sobre o "Recife... das assombrações" e de seus "fantasmas de moças nuas aparecendo a frades devassos”, até a preços de aluguel de carro e a informação de que a época do abacaxi é de outubro a fevereiro, e da manga de novembro a março! Orientado por esse excêntrico guia, os turistas têm seus olhos dirigidos pelo orgulhoso Freyre a pontos de interesse sentimental e pitoresco da cidade. É como se ele criasse, a exemplo da "Londres de Charles Dickens", o "Recife de Gilberto Freyre".
Mas isso não significa dizer que ele enxergasse o Recife com lentes cor de rosa e que seu amor pela cidade fosse cego. Pelo contrário. Indignando-se com muito do que observava, Freyre determinou-se a contribuir para sanar os males que via.
Pode-se, pois, dizer que havia para Freyre, dois Recifes: de um lado, o provinciano e o "afrancesado" - ou seja, o pouco refinado e inculto, que pecava também por ser artificial, seguindo modas vindas de fora sem qualquer discernimento, querendo modernizar-se a qualquer preço. E o Recife vital, profundo, telúrico, autêntico. Ou seja, o Recife de um passado mais distante, em contraste com o do passado imediato, onde imperava o Mau Gosto e o vandalismo.
Uma das coisas que Freyre aprendera lá fora, lendo Chesterton e o crítico de arte John Ruskin, foi que "as cidades falam por meio de sinais.... e estes sinais são seus palácios, suas catedrais, suas igrejas, suas estátuas, seus arcos" etc. Através destes sinais, podia-se "ler" a vida, a moral, o gosto - até a alma de seus habitantes.
Ao chegar ao Brasil em março de 1923, "guloso de cor local", Freyre passou então a ler sua cidade através de seus "sinais", e se desesperou com a nova arquitetura que viu salpicando na paisagem recifence, e que ameaçava fazer desaparecer "o velho Recife". Seu desencanto foi expresso com eloquência: "há um prêmio a que o Brasil deve concorrer na próxima exposição internacional. É o de devastador do passado. Devastador das próprias tradições".
Determinado a fazer diferença no seu mundo, Freyre, usando os artigos do Diário de Pernambuco como principal arma de combate, começou a fazer então, ao lado das denúncias, uma série de propostas de regeneração para a cidade que amava. E salvar Recife significava, em certo sentido, salvar o país, já que, como Freyre disse várias vezes, apesar de tudo o que havia nela a condenar, Recife ainda era a cidade que representava “um Brasil mais brasileiro” do que as demais.
Nesse combate, Freyre foi influenciado pelo vitoriano rebelde William Morris. Nascido em 1834, na Inglaterra, de família abastada, Morris foi um polímata socialista – poeta, artista, designer, escritor, impressor, empresário, ativista político – que denunciou com brilho e bravura os males do capitalismo industrial.
Inicialmente, a Idade Média aparecia para Morris como padrão a partir do qual os males da modernidade deveriam ser medidos. Contrastando as construções do fim da Idade Média com as da sociedade contemporânea, Morris dizia que no passado os artesãos góticos tinham no trabalho um meio de auto-realização, onde podiam exercer sua criatividade, enquanto os trabalhadores modernos deviam abdicar de sua criatividade para se tornar meros instrumentos de precisão. Logo, no entanto, ele percebeu que a solução não estava num romantismo escapista, fundamentalmente nostálgico, mas na volta ao passado medieval para ali buscar inspiração para o desenvolvimento mais sadio e estético da sociedade moderna; uma sociedade em que tradição e modernidade poderiam conviver.
A lição mais profunda de Morris, o jovem Freyre extraiu da Society for the Protection of Ancient Buildings fundada em 1877. Essa sociedade, relata Freyre aos seus leitores, conseguiu “contrariar na Inglaterra... a vitória absorvente da Máquina e do chamado Progresso” e deveria, pois, servir de inspiração para o que Brasil urgentemente necessitava: "de uma campanha que nos eduque no gosto da antiguidade, no gosto do passado, da nossa tradição"; mas que, ao contrário do que se poderia imaginar, nada tinha a ver com o culto ao passado por mero saudosismo ou escapismo. O "instinto de criação", ao invés de prescindir do passado e da tradição, deles se alimenta, argumenta Freyre a partir de então em muitas ocasiões.
Enfim, tendo aprendido com Morris que se pode achar fontes de inovação retornando ao passado, esse "Morris de Subúrbio" (como Freyre se autoproclamou), passou a fazer uma série de propostas para um “urbanismo inteligente” do Recife de seus sonhos; um urbanismo que se inspirava no passado e nas tradições e riquezas regionais de sua cidade natal.
Mais algum tempo seria necessário para que Freyre, desvencilhando-se do preconceito que compartilhava com a elite do país, amadurecesse suas ideias e incorporasse a africanidade e a mestiçagem brasileiras às tradições que – ao lado das da arquitetura, da jardinagem, da culinária etc – deveriam ser prestigiadas como uma rica fonte da energia criativa. Só então é que Freyre estava pronto para escrever Casa-Grande & Senzala.