O terrorista é você

Unil
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terça-feira, 5 de novembro de 2013

Vladimir Safatle

Melhor defesa: proibir governos de reter informações de seus cidadãos
“O ato de monitorar toda e qualquer pessoa em toda e qualquer circunstância é, 
na verdade, um novo paradigma de governo”

Pode um governo ter informações sigilosas de seus cidadãos? Essa pergunta deveria estar atualmente no centro dos debates, pois 2013 será lembrado como o ano em que descobrimos o fim inelutável da privacidade. Não houve fato mundial mais paradigmático em 2013 do que as revelações a respeito da extensão cinematográfica do sistema de espionagem norte-americano.

A privacidade foi, entre outras coisas, uma invenção política ligada à defesa da autonomia dos sujeitos em relação ao poder governamental. Mas, como diz o governo norte-americano, "Todo mundo espiona". O que vimos, no entanto, não foi "espionagem" como a conhecemos, ou seja, essa procura de informações estratégicas sobre a vida política e econômica por meio do monitoramento das atividades de políticos, empresários e congêneres.

O que Edward Snowden nos fez ver, e isso fica cada vez mais claro com o passar dos dias e das descobertas, está para além da espionagem. O ato de monitorar toda e qualquer pessoa em toda e qualquer circunstância é, na verdade, um novo paradigma de governo.

Para controlar pessoas, não preciso estar atento a todos os seus movimentos. Necessito apenas que elas acreditem que, a qualquer momento, posso entrar em seu espaço privado, abrir a porta de seu quarto e quebrar todos os cadeados. Posso armazenar 70 milhões de telefonemas em um mês e nunca saber o que fazer com tudo isso. Não importa. O que importa é você saber que seu telefonema pode, Deus sabe lá por que, acabar no espaço público.

No fundo, isso mostra como a caça ao terrorismo sempre foi um pretexto fraco e uma manobra diversionista. Na verdade, o terrorista é você. O verdadeiro alvo era controlar você, dissolver os discursos que ainda faziam da privacidade uma defesa e fazer você sentir a desproporção brutal entre seu poder e o poder da plutocracia que tomou de assalto boa parte dos governos ocidentais.

Como mostrou a França quando criou um grande banco de dados de segurança nacional chamado Hadopi, começa-se fichando pretensos terroristas e termina-se fichando sindicalistas, manifestantes, jornalistas e ativistas. Nesse sentido, a melhor defesa é proibir que governos tenham direito a armazenar informações sigilosas de seus cidadãos. Todos os cidadãos devem ter o direito a ter acesso a todas as informações armazenadas sobre eles que estejam em posse dos governos.

As dificuldades produzidas em processos jurídicos por uma ideia dessa natureza são infinitamente menores que a corrosão --produzida pela transformação das vidas privadas em espaços de extrema vulnerabilidade-- do pouco que tínhamos de democracia.

*Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo de 5 de novembro de 2013.