Rosa Luxemburgo: democracia e revolução

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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Isabel Loureiro

Brasil, junho de 2013: cenário remete à obra da pensadora alemã
“Não é totalmente impossível separar a luta por democracia política da luta por direitos sociais e econômicos ou, em outros termos, a liberdade e a igualdade”

Em junho de 2013, o Brasil foi surpreendido por grandes manifestações que levaram às ruas de todo o país mais de um milhão e quatrocentas mil pessoas. Vivemos então “um momento Rosa Luxemburgo” e isso por três razões. Esses eventos foram aparentemente uma explosão espontânea, sem direção de partidos, sindicatos, movimentos sociais, embora muitos acreditem que os movimentos urbanos organizados, ignorados pela grande mídia, tenham dado seus frutos nesse momento; a defesa da função pedagógica da ação direta, lema do Movimento Passe Livre que no início convocou a manifestação contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo (a fagulha que incendiou a pradaria); por fim, a defesa do espaço público como espaço de participação de todos. Isso significou naquele momento uma recusa da integração pelo consumo e do assistencialismo despolitizador. Contra as classes dominantes brasileiras – globalizadas como no mundo inteiro –, que se apoderam dos fundos públicos em benefício próprio, os manifestantes reivindicavam serviços públicos de boa qualidade e mais democracia. 

Com isso entramos no nosso assunto, o vínculo estabelecido por Rosa Luxemburgo entre democracia e revolução. Ainda que os eventos de junho não tenham associado os dois termos, na verdade é do que se trata no Brasil onde é totalmente impossível separar a luta por democracia política da luta por direitos sociais e econômicos ou, em outros termos, a liberdade e a igualdade. 
Hoje tornou-se mais claro que nunca que o capitalismo é sinônimo de barbárie (sobretudo nos países do sul) e que a alternativa continua sendo o socialismo, mesmo que seja difícil definir, depois das experiências do socialismo burocrático, no que ele consistiria exatamente. Tudo que sabemos é que precisamos seguir um caminho diferente daquele das revoluções autodenominadas socialistas cuja derrota se deu, em grande parte, por causa dos problemas apontados de maneira premonitória por Rosa Luxemburgo na sua brochura “Sobre a revolução russa”. Se não houvesse outras, só esta já seria uma boa razão para retomarmos mais uma vez sua análise crítica da Revolução Russa, redigida na prisão de Breslau em setembro/outubro de 1918.

Nesse escrito, cuja publicação por Paul Levi em 1922 desencadeou uma polêmica interminável, não há dúvida de que Rosa Luxemburgo dá um “apoio crítico” aos bolcheviques. Ela reconhece que “em condições tão fatais”, ou seja, isolados do resto do mundo, os bolcheviques só puderam realizar “rudimentos frágeis e caricaturais” da democracia e do socialismo. Ao mesmo tempo, pensa que a “admiração acrítica” e a “imitação fervorosa” não contribuem em nada para a “maturidade política” nem para a “capacidade de julgamento crítico das massas”. 
Isso posto, passo a alguns comentários sobre a última parte da brochura. É preciso lembrar que Rosa não pensava em publicar esse texto, o que lhe permitiu desenvolver com toda a liberdade suas ideias sobre a revolução e a democracia, de tal modo que podemos considerá-lo como seu testamento político. Devemos então nos perguntar se haveria nesses comentários feitos para convencer Paul Levi algo novo ou se ela simplesmente retoma e sintetiza as ideias que defendeu ao longo da vida. 

Luxemburgo: visão orgânica do mundo
Uma das interpretações mais interessantes até hoje vem justamente de um filósofo que escreveu no calor da hora. Refiro-me a Lukács que em História e consciência de classe (1923) publicou um ensaio intitulado “Observações críticas sobre a Crítica da Revolução Russa de Rosa Luxemburgo”. Mesmo não concordando com suas críticas, o ensaio é instigante por extrair, daquilo que é conjuntural na crítica de Rosa aos bolcheviques, o núcleo filosófico do seu ideário político. Além disso, as observações de Lukács continuam sendo uma contribuição ao debate sobre o socialismo e o caminho que não se deve tomar para lá chegar. Nesta intervenção vou me limitar aos comentários sobre a última parte do escrito de Rosa.
No seu entender, Rosa se opõe à dissolução da Assembléia Constituinte, ao sistema de conselhos (não é verdade que ela se opõe aos conselhos), à abolição dos direitos políticos da burguesia (isso não é dito no texto), à falta de “liberdade”, ao terror etc. por causa de uma “superestimação do caráter orgânico do desenvolvimento histórico”, de uma “concepção geral ‘organicista’” que a levaria a imaginar a revolução proletária segundo as formas estruturais das revoluções burguesas. Assim, ela rejeitaria a substituição da democracia parlamentar pela democracia conselhista e, de maneira geral, acreditaria que a história, ao apresentar os problemas, apresenta ao mesmo tempo a sua solução. Lukács, em contrapartida, encara a revolução proletária como um processo radicalmente novo, que não pode ser comparado à transição orgânica do feudalismo ao capitalismo e que, portanto, não pode se basear na espontaneidade das massas. Para ele, esse processo exige novas formas de organização e de poder: o partido-vanguarda e os sovietes/conselhos. 

Não vale a pena entrar nos detalhes da polêmica. O que importa é que Lukács sintetiza de modo perspicaz as divergências entre Rosa e os bolcheviques e, assim, as duas maneiras básicas em que o vínculo entre revolução e democracia foi entendido no século XX: de um lado, o marxismo ocidental – com todas as suas nuances –, que não separava democracia e revolução. Diga-se de passagem que a recepção de Rosa Luxemburgo pelos socialistas brasileiros se inscreve nessa corrente. De outro, o marxismo-leninismo, que enfatizava a revolução e deixava a democracia na sombra. O ensaio de Lukács inaugura essa corrente que desde Stalin enveredou pelo caminho da difamação de Rosa Luxemburgo.
Lukács simplifica a posição de Rosa para melhor combatê-la (ou, o que é mais provável, não leu a versão integral da brochura). Como sabemos, Rosa não se opõe aos sovietes em nome do Parlamento, ela pensa que os dois sistemas podem conviver. Além disso, apóia incondicionalmente a tática bolchevique de “todo o poder aos sovietes”. Mas a defesa dessa tática revolucionária não significa que Rosa seja favorável à ditadura do partido e ao terror, posição adotada por Lukács. O filósofo recusa as distinções entre violência e terror, ditadura do partido e ditadura da classe, que considera equivocadas. Seria essa a razão pela qual Rosa cairia na defesa da “liberdade de quem pensa de modo diferente”. Para Lukács, a liberdade não é um valor em si, ela deve servir à dominação do proletariado e só o partido bolchevique seria capaz de levar a cabo tal tarefa. “As outras ‘correntes do movimento operário’ têm uma atitude contrarrevolucionária. Aqui há uma linha direta que vai de Kornilov a Kronstadt.” A comparação entre o golpista Kornilov e os marinheiros revoltosos de Kronstadt é absurda e injusta. Mas o desejo de justificar a política bolchevique e o servilismo do Partido Comunista Alemão em relação à Rússia leva Lukács a esse tipo de malabarismo verbal. 

Rosa Luxemburgo não discorda do uso de “medidas de pressão” contra os inimigos do governo soviético, o que não implica a eliminação física dos adversários. A sua defesa das liberdades democráticas não significa uma volta ao liberalismo, como supõe Lukács, mas um elemento fundamental na constituição de um “espaço público proletário” (Oskar Negt) em que as camadas populares têm a possibilidade de participar amplamente na construção de uma sociedade livre e igualitária. Rosa acredita que os de baixo aprendem com as próprias experiências, que tanto podem encarnar-se numa pluralidade de partidos populares, sindicatos, conselhos, diferentes tipos de associações, quanto em protestos espontâneos, resistências, etc. Para Rosa não há uma forma única de organização representativa das massas populares, uma vez que a luta de classes no seu desenvolvimento leva à modificação incessante das formas organizativas. 
Como vimos, Lukács caracteriza a posição de Rosa como organicista. Ele tem razão, mas não há nisso nada de negativo. O organicismo de Rosa, segundo Michael Löwy, teria uma “certa afinidade com as concepções românticas da história que recusam a ideologia burguesa do progresso, e criticam os aspectos desumanos da civilização industrial/capitalista.” Na análise da Revolução Russa, essa concepção romântica/organicista da história se traduz na ideia de que o tempo de maturação político e psíquico das massas populares é essencial, e por isso uma revolução não se resume à troca dos homens no poder. O papel da experiência é fundamental na concepção política de Rosa Luxemburgo. Essa é a razão pela qual, no seu entender, o socialismo não pode ser introduzido por decreto. As dificuldades da construção de uma sociedade socialista exigem improvisações, soluções criativas que só são possíveis com uma grande liberdade de experimentação o que requer a vigência de liberdades democráticas. 

Rosa emprega frequentemente nesse texto a metáfora da vida para recusar tudo o que está morto, ou seja, tudo que é mecânico, burocrático. Mecânico é precisamente o termo que ela utiliza para se referir à concepção leninista do partido-vanguarda ou à concepção de revolução como assalto de um pequeno grupo ao poder. Rosa Luxemburgo recusa o que chama de “fabricação da revolução” que leva à substituição das massas, não só no decorrer da revolução, mas também depois.
É essa visão de mundo orgânica criticada por Lukács que faz Rosa rejeitar a ideia de que o socialismo pode ser introduzido à força, do alto, por uma vanguarda de revolucionários profissionais, que supostamente sabem melhor o que é bom para as massas populares. Para ela a consciência socialista não pode ser introduzida “de fora” (Kautsky e Lênin) e sim criada na luta quotidiana por direitos e, sobretudo, na luta revolucionária para transformar a ordem vigente. Esse “organicismo” é o solo em que se assenta a ideia básica de sua “teoria” política, a de que a transformação do mundo numa perspectiva socialista só pode ser levada a cabo pela ação autônoma das massas populares. Ou a emancipação é auto-emancipação, ou não é nada. Se essa não for uma alternativa para uma política de esquerda, o modelo leninista de partido, como mostrou a experiência do século XX, também não é.

Artigo publicado originalmente no jornal l'Humanité: http://bit.ly/195PB71

Isabel Loureiro é autora de vários títulos publicados pela Editora Unesp: Capítulos do marxismo ocidental (1998), Liberalismo e socialismo (1995), A Revolução Alemã [1918-1923] (2005), Rosa Luxemburg (2004), Rosa Luxemburg: a recusa da alienação (1991) e Rosa Luxemburgo Volume 1, Volume 2 e Volume 3 (2011)